Guerra no leste europeu

Análise: Quem é fascista na guerra da Ucrânia?

Correio Braziliense
postado em 10/05/2022 06:00
 (crédito: Yuriy Dyachyshyn/AFP)
(crédito: Yuriy Dyachyshyn/AFP)

JAIME PINSKY - Historiador e editor, professor titular da Unicamp, doutor e livre docente da USP. (jaimepinsky@gmail.com)

A bandeira da Ucrânia tem as cores azul e amarela. Já o grupo nacionalista direitista Pravy Sector usa a mesma bandeira, mas com as cores preta e vermelha. Esse grupo se organizou a partir de 2013/14 quando promoveu manifestações contra seu governo, aliado da Rússia, conseguiu depô-lo e acabou por mergulhar o país em um caos político, econômico e étnico. A situação só se equilibrou a partir da surpreendente eleição do atual presidente, Vladimir Zielensky. Ele competiu como um "azarão", entre os partidários da Rússia e os ultradireitistas. Para surpresa de todo mundo e do mundo todo, ele venceu as eleições, tornou-se popular e acabou tendo que sustentar uma guerra contra Putin, que não se conformou com sua vitória, uma vez que desejava um governante submisso aos seus desejos.

Todos devem se lembrar que no início do atual governo brasileiro grupos bolsonaristas referiam-se a "ucranizar" o Brasil. Seu objetivo declarado era promover uma guinada para a direita. Mas não seria errado supor que tinham a intenção de destituir poderes da República, algo promovido pelo grupo ucraniano que lhes servia de modelo (em 2014). A ultradireita ucraniana era chauvinista, francamente antirrussa, antissemita e antiglobalização. Além do que, é bom lembrar que agrupamentos políticos como o Pravy Sector promoviam treinamento militar, que ofereciam a correligionários de outros países. A militante bolsonarista, muito evidente no início do mandato presidencial atual, Sara Winter, proclamava a quem queria ouvir e a quem não queria também que ela própria teria recebido treinamento na Ucrânia com esse pessoal.

Putin e seu círculo de apoiadores alegam que ao derrubar, em 2014, um presidente legalmente eleito, os ucranianos tiveram uma atitude fascista, de nacionalismo extremo, com caráter de antiglobalização, além de chauvinista. De fato, esse perfil político tem se manifestado em muitos países, podendo ser uma ameaça séria às instituições democráticas. Contudo, a invasão russa não se deu por aqueles que poderíamos chamar de "bons motivos". Em nenhum momento o governo russo preocupou-se com a democracia, mesmo porque o próprio presidente russo não é um exemplo acabado de democrata radical.

Ele manipulou e manipula as leis e os tribunais russos, colocando-os a serviço de seus interesses, não do interesse do aperfeiçoamento da democracia russa, muito menos do sistema democrático como concepção e prática política. Aristóteles já dizia, há mais de 2 mil anos, que o sistema democrático se baseia, antes de tudo, em "governar por turnos", isto é, em haver revezamento de indivíduos e correntes políticas no poder. Oferecer veneno e cadeia aos adversários — o que tem acontecido na Rússia — não é, exatamente, a melhor maneira de estimular o desenvolvimento da democracia, convenhamos.

Não deixa de ser irônico que Putin não esperava por Zelinsky no poder. Um não político (era ator, antes de ser presidente, imitava e caricaturava presidentes na tevê, entre outras atividades artísticas) no poder, um cidadão com antecedentes familiares judaicos, não podia e não pode ser chamado de fascista ou de antissemita. Mas, como a lógica formal não é problema para governos autoritários, Putin e seu círculo de poder fingem que o presidente ucraniano é de extrema direita. Não é. E agora, para coroar a falta de sentido de algumas acusações, além de garantirem que os governantes ucranianos podem ser antissemitas e judeus (!) um ministro russo acaba de afirmar que Zielinsky pode ser fascista, embora judeu, pois até Hitler tinha sangue judaico.

O absurdo é evidente. Mas não se trata apenas de atentado à lógica. É também um atentado aos milhões de vítimas do nazismo. Além de infeliz, imbecil, grosseira, agressiva, a frase de uma autoridade russa fere todas as pessoas de bom senso no mundo, as de bom caráter, as sensíveis, todas as que têm compromisso com a verdade. E, devo deixar muito claro, sou um apreciador da cultura russa, amo seus escritores — vários assassinados por Stalin — seus músicos, suas orquestras, seus cineastas, seus dançarinos.

Contudo, como neto de imigrantes, que só escaparam das câmaras de gás nazistas perpetradas pelo mesmo Hitler a quem o ministro russo se refere como tendo sangue judeu, eu me sinto no direito e no dever moral de solicitar pedido formal de desculpas por parte dessa autoridade. Minha avó Sara só escapou do Holocausto, com seus nove filhos, porque o Brasil permitiu que para cá ela viesse. Foi um bom investimento do país: hoje somos, entre netos, bisnetos e tataranetos dela mais de 200 bons brasileiros que trabalham aqui como médicos, professores, empresários, técnicos, dentistas, editores, artistas, entre outras profissões.

Sim, a Ucrânia talvez não possa se vangloriar de seu passado democrático, de ser um país aberto para minorias culturais e étnicas. Sim, durante a Segunda Guerra Mundial nem sempre colaborou com as democracias; na verdade, esteve mais perto da Alemanha nazista e há casos terríveis de massacres perpetrados por ucranianos contra minorias nessa época e até antes da guerra. Contudo, ter ficado do "lado certo" contra o nazismo não dá à Rússia carta branca para invadir seus vizinhos, Estados independentes, mesmo que não goste de seus governantes. E inventar mentiras contra ucranianos e outros povos não é digno de um país e um povo tão relevantes quanto o russo.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.