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Artigo: Tic tac — regressiva para não esquecer

Correio Braziliense
postado em 13/08/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

FAUSTO JOSÉ — Jornalista, membro-fundador da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF), escritor e ator

Viver não é tão fácil assim, quando se é PPP — preto, pobre e periférico. Só o rap para nos aliviar a dor, a lágrima, o sangue que escorre e mancha o chão da alma. Articulado e destemido, o movimento alterou o comportamento criativo de todos os segmentos artísticos populares do mundo. A estética, a literatura, o cinema, o teatro, a moda, a ópera, as artes plásticas, a dança, a televisão... tudo mudou com as bases, os traços e as rimas do rap. Tic tac.

Música preta de parto e essência, nasceu periférico, marrento e orgulhoso, no Bronx, subúrbio de Nova York, nos Estados Unidos. Espalhou-se pelo mundo para dar voz aos amordaçados e amaldiçoados. No Brasil, a novidade rítmica chegou aos becos, vielas, pracinhas, associações comunitárias, inicialmente das capitais e depois a se espalhar por todos os espaços.

DJ Hum, Thayde, Mc Jack e Código 13... puxaram a fila a partir de São Paulo. Espalharam o novo swing pelas noites, pelas associações comunitárias das periferias, ocupações culturais, botecos. As associações de bairros mais distantes dos centros urbanos absorveram os Djs segurando a bolacha como se fossem impávidos e soltando-as num ato divinal. Trilha sonora de um filme real. E, Sabotage coloca o debate da luta de classes na efervescência social dos anos 80. Tic tac.

Dolorosamente, as pick ups dos DJs compuseram as mais asfixiantes trilhas sonoras das últimas três décadas. Daqui a menos de dois meses, completam-se 30 anos da mais violenta carnificina urbana brasileira. Em 2 de outubro de 1992, a Polícia Militar paulista praticou uma das maiores violações à Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Agindo como milícia sanguinolenta, insana e inconsequente, cometeu a maior carnificina da história contemporânea. Há datas que a gente nunca esquece. Daqui a quatro meses, mais uma vez, a humanidade lamentará a morte de 111 vítimas de uma das maiores monstruosidades praticadas pelo homem: o massacre do Carandiru.

Nove meses depois, em 23 de julho de 1993, policiais militares do Rio de Janeiro disparam contra um grupo de meninos, meninas e adolescentes em situação de rua nas escadarias da Igreja da Candelária deixando oito menores mortos e dezenas feridos. E, no mês seguinte, em 29 de agosto, policiais fortemente armados e encapuzados fuzilaram 21 pessoas na comunidade de Vigário Geral. Centenas de almas penadas vagando sem eira nem beira pela escuridão ardente do inferno. É como se não houvesse nem céu e nem chão. Famílias destroçadas vagando sem eira nem beira em estado de choque. Tic tac.

O rap já havia se estabelecido como trilha sonora daquele momento, mas seria a acidez das lágrimas inconsoláveis de agonia que brotaria da profundeza oca dos olhos órfãos para pedir a revanche através da arte. Gente preta sem eira nem beira com a lâmina da faca cravada no coração. Em 1997, os Racionais MC's lançam e emplacam o CD Sobrevivendo no inferno, que chacoalha o mercado fonográfico, estabelece novos padrões comportamentais e consolida o hip hop no Brasil. Uma nova rede de pequenos negócios periféricos se multiplica para além dos centrinhos badalados e corredores da moda.

O gênero que já havia se espalhado pelo mundo, se multiplica pelo cenário brasileiro. O gênero passou a dar novo sentido à sobrevivência no país. Por exemplo, o raper Rapadura reverencia o Ceará misturando a música tradicional do Estado com batidas de vanguarda; na Bahia, Opanijé, pede licença aos orixás e faz suas bases inspiradas na macumba; no Distrito Federal, Japão-Viela 17, entoa a melancolia nervosa do jovem desassistido. Na Baixada Santista, o Zona de Atack estaqueia as bases nervosas do ritmo. A poesia cantada que havia tomado as programações musicais influencia a própria poesia literária.

Os escritores Nelson Maca, da Bahia e o mexicano radicado no Brasil, Alejandro Reys revestem seus textos com as armaduras do rap. Aí, implacavelmente, o gênero chega às universidades. Por exemplo, o professor Acauam Silvério de Oliveira, da Universidade de Pernambuco, passa a ilustrar suas aulas referindo-se ao rap como o estilo poético mais vigoroso da virada do século e o sociólogo e economista português Boaventura de Souza Santos proclama Brasil com P, do GOG, como um dos textos mais criativos e consistentes do gênero.

Tic tac tic tac-tic tac… buuuummmmmmm.

 


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