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Artigo: Constituição Federal, leis complementares e ordinárias

Correio Braziliense
postado em 14/08/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

SACHA CALMON - Advogado

A lei complementar, na forma e no conteúdo, só é contrastável com a Constituição (o teste de constitucionalidade se faz em relação à superlei) e, por isso, pode apenas entrar na área material que lhe esteja expressamente reservada. Se porventura cuidar de matéria reservada às pessoas políticas periféricas (estado e município), não terá valência. Se penetrar, noutro giro, competência estadual ou municipal, provocará inconstitucionalidade por invasão de competência. Se regular matéria da competência da União reservada à lei ordinária, ao invés de inconstitucionalidade, incorre em queda de status, pois terá valência de simples lei ordinária federal. Abrem-se ensanchas ao brocardo processual "nenhuma nulidade, sem prejuízo", por causa do princípio da economia processual, tendo em vista a identidade do órgão legislativo emitente da lei. Quem pode o mais pode o menos. A recíproca não é verdadeira. A lei ordinária excederá se cuidar da matéria reservada à lei complementar. Não valerá. Quem pode o menos não pode o mais.

Outrossim, é oportuno observar que as situações acima narradas implicam diferentes técnicas de reconhecimento normativo. Voltando à lei que, votada como complementar, trata de objeto reservado à lei ordinária federal, ocorre o fenômeno da adaptação: o sistema adapta a pretensa lei complementar à função que lhe determinou o ordenamento ratione materiae. No caso de lei complementar regulando matéria de lei ordinária estadual ou municipal, ocorre o fenômeno da rejeição. O sistema jurídico rejeita a norma, vedando o seu ingresso no ordenamento para evitar a invasão das competências fixadas na CF. O mesmo ocorrerá se a lei ordinária federal cuidar de matéria reservada à lei complementar. Já o fenômeno da recepção ocorre quando o sistema reconhece a existência da lei, sua validade formal, sua validade material e, portanto, se vigente, a sua eficácia. As técnicas de reconhecimento, portanto, uma vez utilizadas, levam à adaptação, à rejeição ou à recepção das normas do sistema.

À guisa de conclusão, fazemos duas últimas advertências. A primeira delas é a de que, nos termos da jurisprudência do STF, inexiste qualquer hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária. Na verdade, verifica-se entre tais espécies normativas meramente uma distinção no tocante à matéria que cada uma veicula, porquanto a esfera de conteúdo da lei complementar é, como vimos, determinada pela própria Constituição.

A segunda advertência que fazemos, por sua vez, remete-nos ao art. 62, § 1º, III, de nossa Carta, que é expresso ao proibir a edição de medida provisória sobre matéria reservada à lei complementar. Ora, possuindo a lei complementar, como efetivamente possui, diversas funções no campo tributário, tem-se, por via de consequência, que as possibilidades da medida provisória na seara da tributação são bastante limitadas.

Embora já saibamos que as leis complementares, em tema de tributação, têm por objetos materiais: (a) editar normas gerais; (b) dirimir conflitos de competência; (c) regular as limitações ao poder de tributar; e (d) fazer atuar ditames constitucionais, é oportuníssimo vislumbrar como operam as leis complementares dentro do sistema (interconexão normativa).

Pois bem, as leis complementares atuam diretamente ou complementam dispositivos constitucionais de eficácia contida (balizando-lhes o alcance), ou, ainda, integram dispositivos constitucionais de eficácia limitada (conferindo-lhes normatividade plena).

Como dito anteriormente, o art. 146 do atual texto constitucional estabelece três funções materiais para a lei complementar: (a) dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária entre as pessoas políticas, (b) regulação das limitações constitucionais ao poder de tributar e (c) editar normas gerais de Direito Tributário, com alguns caminhos já pautados pelas letras "a" a "d" do inciso III e parágrafo único, todos do mesmo art. 146.

Como operam as leis complementares em matéria tributária. Bem examinadas as coisas, as leis complementares funcionam como manifestações de expansão da própria Constituição, daí o adjetivo complementar (da Constituição).

Conquanto a integração das leis constitucionais possa ser feita por leis ordinárias, plebiscitos, referendos etc., dependendo do querer do legislador máximo, como bem observado por José Afonso da Silva, entre nós o constituinte elegeu a lei complementar como o instrumento por excelência dessa elevada função, com os matizes que vimos de ver, embora sem excluir aqui e acolá outros instrumentos integrativos. Em matéria tributária, sem dúvida, a lei complementar é o instrumento-mor da complementação do sistema tributário da Constituição, a começar pelo Código Tributário Nacional, que, material e formalmente, só pode ser lei complementar. Quatro consequências devem ser ditas: a) o legislador não escolhe a matéria da lei complementar, fá-lo a Constituição; b) o legislador ordinário não pode adentrar matéria de lei complementar, torná-la-ia inútil; c) a lei complementar só é superior às leis ordinárias quando é o fundamento de validez destas; e d) a matéria sob reserva de lei complementar é indelegável (art. 68, § 1º, da CF).

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