opinião

Violência e xenofobia racializadas: há um holocausto negro no Brasil?

Correio Braziliense
postado em 10/09/2022 06:00 / atualizado em 10/09/2022 16:14
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

Por Júlio Camisolão — Membro do Movimento Negro Unificado (MNU)

Estamos sendo continuamente impedidos de viver nossa humanidade. É a partir desse ângulo que enxergo todas as formas de violência e silenciamento físico e mental impostas aos descendentes de africanos no Brasil. Lembro de uma citação no livro de M. H. P. T. Machado (“Crime e Escravidão: Trabalho, Luta e Resistência nas Lavouras Paulistas”), em que um homem escravizado que respondia a um processo criminal por ter assassinado seu senhor, dizia o seguinte: “Matei lobisomem, não matei homem.”

O que essa afirmação traduz é a certeza de que não há humanidade no agressor, portanto é lobisomem e esse ser inumano quer nos impor uma condição desumana, através da limitação do direito de ir e vir, da abordagem violenta, da invasão de domicílios sem autorização judicial, da execução como forma de substituição a um eventual processo judicial, precedido de um inquérito neutro e que não tenha vícios.

Não precisamos contar as vítimas e os inúmeros corpos espalhados pelos becos, vielas e ruas das grandes cidades, pois agora o extermínio ocorre em supermercados, lojas, camburões (viaturas) que funcionam como espaços de tortura e câmaras de gás itinerantes, à luz do dia, pra quem quiser ver. No entanto é possível listar a violência e a xenofobia racializadas em atos e de forma cronológica.

No Rio de Janeiro por exemplo foram: Chacina de Acari (1990), Chacina da Candelária (1993), Chacina do Vigário Geral (1993), Chacina do Maracanã (1998), Chacina do Borel (2003), Chacina da Via Show (2003), Chacina da Baixada Fluminense (2005), Chacina do Panamericano (2007), Chacina do Morro Fallet-Fogueteiro (2019), Chacina do Jacarezinho (2021), Chacina da Vila Cruzeiro (2022).

Em Goiás teve o caso dos 10 adolescentes queimados vivos em 2018, em um Centro de Internação Provisória, localizado no 7º Batalhão da Polícia Militar, quase todos negros. Por falar em queimado, há o caso recente em Santa Catarina do atentado racista contra um jovem negro na avenida Beira Mar em Florianópolis.

Dados recentes da Rede de Observatório de Segurança apontam que a PM baiana é uma das mais letais do país e que em apenas dois anos foram 74 chacinas. O caso mais emblemático foi a Chacina do Cabula. Não pretendo aqui fazer um registro geral, apenas mostrar alguns exemplos. Trazemos aqui os casos de Gustavo Henrique Soares Gomes de 17 anos, em Samambaia Norte (DF), sem passagem pela polícia, alvejado com um disparo no tórax porque estava de carona em uma motocicleta, o congolês Moïse Kabagambe foi outra vítima dessa violência e Durval Teófilo Filho, assassinado no Rio de Janeiro pelo Sargento da Marinha que deduziu tratar-se de um elemento nocivo, no entanto era seu vizinho de condomínio.

No Rio Grande do Sul, tivemos os casos de Júlio César de Mello Pinto (homem errado), de João Alberto Silveira Freitas no Carrefour, além da tentativa de execução do angolano Gilberto Almeida. No Maranhão, em Açailândia tivemos o caso jovem negro Gabriel da Silva Nascimento. Os afrobrasileiros que escapam a esse genocídio e xenofobia racializada, são também vítimas do sistema judiciário composto predominantemente de pessoas brancas, a presidirem inquéritos viciados e decisões permeadas pelo que hoje se chama de racismo estrutural e encerram tais processos determinando que essa população alvo seja depositada no desumano sistema prisional brasileiro. Reflitamos sobre essa perspectiva de exterminar a humanidade que existe em nós (os/as negros/as) estabelecendo essas formas de violência e brutalidade. Como disse Marimba Ani ao cunhar o termo suaíle “maafa” (grande desastre), não há dúvidas da existência de um projeto genocida contra nossa humanidade negra.

No Brasil esse projeto deve ser classificado como um processo contínuo, ininterrupto, ou seja, há efetivamente um holocausto negro para o qual o sistema de segurança pública e aqui incluo também as guardas municipais, está montado e regulamentado para ser o executor. É a máquina de guerra financiada e treinada para matar em nome do Estado, ou seja, não há despreparo na formação dos agentes de segurança, eles são formados e treinados para cumprir esse papel.

O sistema judiciário é parte dessa engrenagem que dá sustentabilidade ao holocausto negro no Brasil, pois condena e encarcera com base no racismo estrutural. Quanto aos policiais, devem ser investigados e responsabilizados com rigor. Precisamos acabar com esse consenso criminoso de basta ser uma pessoa negra para ser “julgada” culpada ou no mínimo suspeita.

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