NELSON FERNANDO INOCENCIO DA SILVA - Professor de Artes Visuais e membro do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros da Universidade de Brasília
Realizar uma avaliação sensata do processo eleitoral de 2022 requer entendimentos meticulosos das circunstâncias nas quais se encontraram envolvidas muitas das candidaturas de segmentos historicamente preteridos. Após o inevitável estarrecimento diante dos êxitos adversários, tornou-se mais evidente algo que já era do nosso conhecimento: o imenso nível de despolitização da sociedade em um cenário político que inspira sérios cuidados.
Deparamo-nos com situações paradoxais. A manutenção do projeto conservador para o GDF, sem chances de um segundo turno, feito incomum no tocante à realidade local, contrasta com outras respostas do eleitorado, a exemplo dos três homens afrodescendentes que encabeçam a lista de distritais, os quais representam as vozes de segmentos socialmente vulneráveis.
Além deles uma mulher negra de uma legenda distante do campo democrático, também foi contemplada. Algo raro de observar, apesar da questão ideológica. Aliás, esse é outro debate, a compreensão de que a presença mais substantiva de pessoas negras no parlamento não penderá necessariamente para o que há de mais avançado. O discurso que reiteradamente refuta essa questão dialética carece de observação do concreto e, sobretudo, dos efeitos deletérios do racismo.
Não obstante, faz-se necessário refletir sobre o processo eleitoral quanto a certos aspectos. Embora tenhamos o que celebrar, considerando um rol de candidaturas negras bem-sucedidas em âmbito nacional. Por seu lado, não devemos ignorar o fato de a população negra constituir-se maioria numérica. Tal situação seria benéfica e nos permitiria almejar muito mais, em termos da perspectiva de poder, não fosse o empobrecimento espraiado da cultura política que atravessa e entorpece este país. Dói saber que um contingente considerável dos que flertam com o autoritarismo se constitui alvo preferencial de sua necropolítica.
Saiba Mais
Acompanhando o exíguo período de campanha eleitoral nas ruas, ficou evidente o desgaste e a desidratação das candidaturas não majoritárias protagonizadas por pessoas negras e indígenas ao longo do processo e em busca de reconhecimento, tanto para dentro quanto para fora de seus respectivos partidos. Aqui estamos nos restringindo às legendas de esquerda e centro-esquerda articuladas no intuito de derrotar o fascismo e reestabelecer as pautas de interesse social que se sobreponham à retrógrada agenda de costumes. Manifestação que nunca foi tão óbvia desde os tempos do efêmero governo de Jânio Quadros. Não há dúvidas de que a onda conservadora contemporânea é mais do que uma onda, é um verdadeiro tsunami.
A realidade fornece sinais suficientes no sentido de olharmos para dentro e ver que será longo o percurso, a fim de que consigamos ampliar os entendimentos nos ambientes dos partidos declaradamente libertários, acerca das interseccionalidades de etnia, raça, classe, gênero e orientação sexual. Assistimos com certa estupefação a lutas de candidaturas indígenas, negras, operárias, de mulheres cisgênero, de mulheres e homens transsexuais, de gays e lésbicas para conseguirem realizar com o mínimo de dignidade suas campanhas. Porém, a expectativa em torno do fundo partidário acabou frustrando projetos, muitos dos quais apresentavam demandas de pouca ou raríssima visibilidade.
Além dessa questão, as cotas destinadas às candidaturas femininas e negras precisam ser valorizadas e amplamente reconhecidas no interior dos partidos. Em se tratando especificamente da cota racial, existem danos em relação aos quais não devemos silenciar. Conforme já ocorre nos vestibulares das universidades públicas e concursos voltados para o funcionalismo público, o afro-oportunismo ou afroconveniência instaura-se de modo assustador. "Novos negros" começaram a brotar de todos os cantos, como se a autodeclaração pura e simples pudesse servir de garantia contra o crime de falsidade ideológica. Esse é mais um desafio para o Movimento Negro nas próximas eleições.
Resta-nos agora concentrarmos nossas energias, reconhecendo o patrimônio que representam os cerca de 48 milhões de votos em Lula e trabalharmos para ampliar a vantagem, hoje em torno dos 6 milhões de diferença. Segundo análises políticas, as pautas identitárias não definirão o jogo. Vencer o segundo turno, porém, é condição precípua para que as questões ora apresentadas retornem ao centro do grande debate nacional, tendo como referência discussões qualificadas.
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