Opinião

Artigo: Em lados opostos?

Se no Oriente Médio o cenário da disputa remete ao petróleo e à polêmica em torno dos trabalhadores imigrantes, por aqui segue sendo o da mobilidade urbana, tendo como evento mais recente o controverso episódio de violência praticada contra um rodoviário

Correio Braziliense
postado em 02/12/2022 06:00
 (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press)

ADRIANA MODESTO -- Doutora em Transportes e mestra em Ciências da Saúde

A cada quatro anos, uma singela bola rola nos gramados colocando nações em lados opostos. No cenário da disputa em que uma seleção levará o caneco, guerreiros carregam em suas chuteiras as esperanças da população. Da torcida se espera o entusiasmo; dos jogadores, o talento e o fair play; do juiz, a imparcialidade. Se no Oriente Médio o cenário da disputa remete ao petróleo e à polêmica em torno dos trabalhadores imigrantes, por aqui segue sendo o da mobilidade urbana, tendo como evento mais recente o controverso episódio de violência praticada contra um rodoviário.

Se no Catar os gentílicos genuínos (ou não) definem de que lado se está, no caso da mobilidade urbana, em específico no que tange ao transporte público coletivo, talvez motoristas profissionais e usuários (tendo em vista o perfil prevalente), não tenham consciência que foram escalados para a mesma equipe, a dos trabalhadores.

A ocorrência acima referida apresenta várias nuanças: acidente de trabalho envolvendo rodoviário; cadeia que compõe a prestação do serviço; e elementos distais e proximais pertinentes ao evento indesejado, então, a fim de consubstanciar a análise do caso, esclareço: nenhuma atividade laboral está livre de riscos ocupacionais e, a depender da atividade, a graduação dos riscos pode potencializar a exposição do trabalhador a determinadas ameaças.

Considerando-se a dinâmica laboral de rodoviários, sublinho como fatores de risco aqueles relacionados à organização do trabalho; ao veículo; e ao ambiente. Esses profissionais têm como espaço de ofício ambiente parcialmente não controlado (vias), sujeito à violência urbana e os riscos do trânsito. A meu juízo, isso acaba impondo dupla carga de vulnerabilidade, as inerentes ao ofício e as inerentes ao trânsito. No caso deles, por se tratar de motoristas profissionais, experimentam maior tempo de exposição aos riscos do trânsito quando comparados àqueles que utilizam o transporte apenas para promover deslocamentos — origem/destino.

O trabalho como rodoviário pode favorecer alguns danos à saúde: obesidade, hipertensão arterial, doenças da coluna, perda auditiva, distúrbios do sono e psiquiátricos entre outros. Em se tratando de acidente de trabalho, é necessário que o trabalhador seja assistido pela empresa, entendendo que as entidades de classe podem atuar para que sejam garantidas ou reivindicadas condições seguras de trabalho. Complemento com a promoção da saúde secundária e terciária no que se refere à reabilitação, recolocação no mercado de trabalho, invalidez transitória ou permanente. Acrescento que, além de eventual absenteísmo, é sempre importante considerar o "presenteísmo".

Em sentido amplo, é imprescindível a promoção de ações voltadas para a gestão da segurança no trabalho, adoção de barreiras de proteção e segurança para que o evento indesejado - acidente - seja evitado. Poderia relacionar como medidas preventivas, por exemplo, as de natureza ergonômica, treinamento e capacitação do trabalhador dialogando com o aspecto da segurança viária, naturalmente sem imputar ao profissional eventuais falhas do sistema; manutenção veicular (frota), e conscientização da população.

No caso deles, trabalhadores, é importante mencionar que uma parcela experimenta condições laborais precarizadas haja vista as meias jornadas, a pressão para o cumprimento da programação (itinerários e horários), as condições dos terminais, além da fragilização das relações laborais e garantias sociais impostas pela recente reforma trabalhista.

No que tange ao contexto do ofício, destaco ainda: a existência de um trânsito nervoso devido ao uso massivo do transporte individual motorizado no DF; o fato de que estão em curso obras de infraestrutura viária que têm gerado uma série de desdobramentos no trânsito (congestionamentos, desvios de curso) que, por consequência, acabam interferindo também na operação e, por sua vez, podem gerar estresse excessivo nos motoristas profissionais.

Relativo ao episódio, enfatizo que há canais apropriados (embora muitas vezes não efetivos) para a manifestação de descontentamento e queixas por parte da população, ouvidorias, por exemplo, não sendo correto ou tolerável, ainda que reconheça a legitimidade da insatisfação com o sistema como um todo (sou usuária), penalizar aquele que também é vítima do sistema, colocando a integridade física e a vida desse trabalhador em risco, assim como dos demais usuários.

Diante do exposto, ponderando-se quanto à cadeia que compõe o serviço, infiro que o passageiro e o motorista profissional (além do cobrador), são os sujeitos mais vulneráveis, portanto escalados para a mesma equipe. Não sei se o Brasil levará o caneco, mas, no âmbito da mobilidade urbana, o desejo é que a Seleção do DF ganhe a Copa da cidadania, do fair play, das dondições laborais adequadas, da oferta de serviços inclusivos, sustentáveis e seguros.

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