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nova era geológica

Artigo: A agricultura no Antropoceno

Neste ano, o edital tem como tema "Gestão Estratégica de Dados de Produção Agropecuária" -  (crédito: Breno Fortes/CB/D.A Press)
Neste ano, o edital tem como tema "Gestão Estratégica de Dados de Produção Agropecuária" - (crédito: Breno Fortes/CB/D.A Press)
postado em 08/01/2023 06:00

MAURÍCIO ANTÔNIO LOPES - Pesquisador da Embrapa Agroenergia

Antropoceno é uma denominação não oficial de tempo geológico cada vez mais usada para descrever o período mais recente da história da Terra, quando a atividade humana passou a ter grande impacto no clima e nos ecossistemas do planeta. Derivada da junção das palavras gregas anthropo, para "homem" e ceno para "novo", a proposta de uma "era recente do homem" poderá suceder o Holoceno — o período iniciado há cerca de 12 mil anos, palco da disseminação da espécie humana e de seus impactos em todo o mundo.

Definir uma nova era geológica de nossa própria autoria pode parecer exagerado e até arrogante, considerando que as eras geológicas até agora descritas perduraram por períodos extremamente longos. Os dinossauros, por exemplo, reinaram absolutos no planeta durante 140 milhões de anos, milhares de vezes o tempo da história humana até agora registrada. No entanto, é fácil constatar que nenhuma outra espécie alcançou a capacidade humana de subverter a escala geológica até então operando no planeta.

Em espaço de tempo muito curto nos tornamos capazes de extrair e usar recursos fósseis e minerais de forma massiva, o que promoveu profundas alterações nos oceanos e nas paisagens terrestres, com a expansão da agricultura e o avanço incessante das cidades. Cimento, aço e plástico se tornaram pilares da civilização moderna e são demandados em enormes e crescentes quantidades há décadas. As rodovias, ferrovias, rotas marítimas e aéreas cortam o planeta em todas as direções e acentuam a ação humana em todos os lugares.

Portanto, mais que um significado cientificamente fundado na noção de tempo geológico, o conceito de Antropoceno tem forte simbolismo, por renovar a atenção aos ambientes naturais e aos seus significados para o funcionamento do planeta e para o bem-estar dos seres vivos. Um estímulo para conhecer, manejar e extrair progresso e riqueza do nosso patrimônio natural de forma mais inteligente e sustentável, usando a criatividade e o engenho humanos para ajustar a trajetória da sociedade na direção de um novo paradigma de progresso.

O resultado da atuação humana sobre a natureza tem enorme significado para a agricultura e o sistema alimentar, uma vez que a degradação dos recursos naturais e de funções críticas dos ecossistemas podem enfraquecer ou mesmo destruir as bases sobre as quais a produção de alimentos é construída. Daí a necessidade imperativa de sistemas alternativos à produção agrícola tradicional, com combinação mais inteligente de recursos da natureza e inovações tecnológicas, de forma a ampliar eficiência, sustentabilidade e resiliência, em sintonia com as mudanças sociais, econômicas e demográficas em curso. Mudanças que impactam dietas, estilos de vida, atitudes e expectativas de uma sociedade mais urbana, bem informada e exigente.

O fato é que a popularização do conceito de Antropoceno tem colocado em evidência erros de design da agricultura tradicional, que precisará ser reinventada para atender às necessidades da sociedade e ao mesmo tempo salvaguardar a integridade dos ecossistemas. É difícil imaginar futuros promissores para modelos de agricultura baseados na equivocada premissa de que os recursos materiais do planeta são ilimitados. O mais provável é que a agricultura seja desafiada a alimentar uma população crescente mimetizando a natureza na sua capacidade usar recursos com eficiência, incorporando resíduos, conservando solo e água e fixando mais que emitindo carbono.

O Brasil talvez seja o país com melhores perspectivas de consolidação de um modelo de agricultura contemporâneo e capaz de ajudar a reparar o sistema terrestre, adotando práticas que vão muito além da neutralização de impactos do Antropoceno. Já se expande no país uma agricultura regenerativa, diversificada e sistêmica, com modelos de produção integrada, desenvolvidos pela Embrapa para combinar lavouras, pecuária e floresta, em um mesmo espaço, o que abre caminhos para que o Brasil possa no futuro colher até "safras" de carbono, com ganhos nas dimensões econômica, ambiental e de imagem perante consumidores ávidos por sustentabilidade.

Em linha com a emergente bioeconomia, a agricultura tropical pode, como nenhuma outra, dar grandes saltos no campo do biorrefino, derivando da biomassa componentes industriais renováveis, ajudando a reparar e compensar os impactos negativos das indústrias de energia, química e materiais, ainda muito carbonizadas. O Brasil é referência global no biorrefino da cana de açúcar, da qual se produz açúcar, etanol, biodiesel, bioeletricidade, biogás e múltiplos componentes industriais de baixo impacto. A Embrapa, universidades e empresas brasileiras já se dedicam a derivar, de biomassa e resíduos agrícolas e agroindustriais, bioprodutos para variadas cadeias de valor da bioeconomia.

Tais avanços indicam que temos um caminho promissor à frente. Felizmente muitos compreendem que, frente à realidade do Antropoceno, não faz sentido considerar a agricultura uma simples atividade econômica, parte do setor primário. É urgente entendê-la como uma atividade essencial, que impacta e molda a nossa forma de existir no mundo. Ao abraçar um modelo de agricultura regenerativa, sistêmica e multifuncional, os atores envolvidos poderão aderir a um novo contrato social e à missão de alimentar o mundo e, ao mesmo tempo, reparar o planeta.

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