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árvore da vida

Artigo: Os baobás de Brasília são sementes da herança africana

pri-2101-opiniao Opinião -  (crédito: Caio Gomez)
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ANDRÉ LÚCIO BENTO
postado em 21/01/2023 06:00

ANDRÉ LÚCIO BENTO - Linguista, especialista em cultura afro-brasileira e professor da Secretaria de Educação do DF

"Professor, essas árvores 'de fora' não são prejudiciais ao nosso cerrado e a outros biomas brasileiros?" Essa foi a pergunta mais recorrente dirigida a mim quando comecei a tornar público, em 2020, o registro de catalogação dos baobás de Brasília. Confesso que esse interesse me surpreendeu, pois nunca tinha ouvido ninguém questionar, por exemplo, algo parecido sobre os pés de manga espalhados pela cidade (mangueiras são asiáticas), nem sobre os pinheiros igualmente dispersos pela capital.

Fui me dando conta, aos poucos, de que a dúvida em torno dos baobás surgia, sobretudo, por causa de sua origem africana: eles não compõem a cena colonial, não servem de cenário coberto de neve, com renas, bolinhas e luzes de Natal. Os pinheiros europeus, além de serem "de fora", são invasores e, portanto, danosos aos nossos biomas. Mas são europeus e, por isso, nunca foram alvo de questionamento. Perguntas, às vezes, podem ter fundo racista… Os baobás, apesar de serem de fora, não são invasores. E isso significa que só proliferam indefinidamente com a irresponsável ação humana.

Outras perguntas, porém, me foram feitas também. Quase todas em relação aos motivos que me fazem catalogar os baobás de Brasília para, um dia, pedir às autoridades do governo local o tombamento deles na condição de patrimônio cultural da capital do Brasil. E a resposta sobre o motivo principal que me leva a fazer o registro dessas lindas, longevas e sagradas árvores existentes por aqui é a consciência de que não estou catalogando simplesmente árvores, mas, sim, demarcando cultura, religiosidade, identidade e ancestralidade dos povos pretos. Os baobás são tudo isso.

Presente em Brasília, capital do país com a maior população negra fora da África, o baobá é considerado, na cosmovisão de muitos dos povos tradicionais africanos, a árvore da criação, o limiar dos mundos e, por isso, imorredouro, uma vez que extrapola a dimensão das coisas materiais e táteis. É a árvore da vida. A árvore da palavra, sobretudo pelo fato de que seu entorno é o lugar onde os mestres griôs cantam ou contam histórias para os mais novos, perpetuando, pela oralidade, a cultura, os valores civilizatórios e as identidades dos povos pretos.

Plantados em Brasília, cidade construída majoritariamente pela força de trabalho de mulheres, crianças e homens negros, os baobás têm importância material para muitas das sociedades tradicionais da África. Suas folhas e frutos são comestíveis. O fruto, chamado de múcua em Angola e de malambe em Moçambique, tem elevado valor nutricional e pode ser consumido puro, na forma de suco, farinha, mingau, iogurte, bolo, mousse ou creme. Com textura seca e porosa, o fruto tem, do ponto de vista terapêutico, propriedades antipiréticas, anti-inflamatórias e analgésicas.

É tido como a árvore do químico ou a pequena farmácia. A cavidade do tronco é uma verdadeira reserva de água consumível, peculiaridade que o torna, em alguns lugares, a árvore garrafa.

No campo religioso, os baobás são reverenciados como árvores sagradas, testemunhas do tempo, significando vitalidade e energia. E chegam a ser cultuados como divindades em algumas regiões da África. Existe uma espécie de baobá endêmico do norte da Austrália e, também lá, ele tem proeminência cultural para aborígenes, sendo considerado o espírito da criação pelo povo worrorra.

É esse conjunto de representações que eu registro a cada novo baobá encontrado. Os mais de 75 baobás brasilienses já catalogados não são de fora. São nossos e são parte da perene e necessária reconexão Brasil-África. Chegaram ao Brasil ainda nos navios negreiros, na forma de sementes disseminadas pela diáspora e, hoje, marcam a cidade em muitos de seus espaços públicos, privados e sagrados. Tombar os baobás de Brasília como patrimônio cultural significará o reconhecimento do Estado quanto ao valor simbólico que as deslumbrantes, colossais e sagradas árvores guardam para os povos africanos e para todos os povos que deles descendem.

Se tombados, os baobás passam a ser objeto de importante preservação, cuidados e conteúdo para as práticas de educação patrimonial, além de fortalecer e legitimar a proposição de políticas públicas para o atendimento ao que estabelecem as Leis 10.639/03 e 11.645/08 em relação ao ensino de temáticas históricas e culturais afro-brasileiras, como parte do processo mais amplo de discussão em torno da educação antirracista.

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