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Artigo: Não é mais do Estado o monopólio legítimo da violência

pri-2001-opiniao Opinião -  (crédito: Caio Gomez)
pri-2001-opiniao Opinião - (crédito: Caio Gomez)
MAÍRA MORAES
postado em 20/01/2023 06:00

MAÍRA MORAES - Pesquisadora pós-doutoranda em antropologia social e doutora em comunicação e sociedade pela Universidade de Brasília

Felizes éramos quando bastava Weber e sua afirmação de que o "Estado não se deixa definir a não ser pelo específico meio que lhe é peculiar, tal como é peculiar a todo outro agrupamento político, ou seja, o uso da coação física". Vários são os agrupamentos que recorrem à violência para o estabelecimento e manutenção do seu poder. Mas o monopólio do uso legítimo da violência física seria do Estado.

Bourdieu complicou nossa vida quando mostrou o "grande fetiche que é o Estado" e se referiu a tal como o "banco central de capital simbólico". Além da violência física, começamos a lidar com a violência simbólica. Essa última, resultante de um poder do Estado capaz de criar códigos unificadores das formas de comunicação. Nossa legislação, nossa língua, a burocracia a que todos os brasileiros estão sujeitos desde o nascimento, nos fazem seres que compartilham uma estrutura cognitiva que nos torna capazes de reconhecer e transitar entre os códigos com normalidade.

A ideia da democracia seria uma dessas figuras cognitivamente compartilhadas, ou melhor, comungamos de uma racionalidade de Estado democrático, cuja lógica e sentido o próprio Estado produziu, produz e produzirá. Daí vem a questão: diante do que vivemos nos tempos atuais, falamos sobre ameaças ao Estado democrático ou sobre a irrupção de outra democracia.

Defendo que temos em elaboração, na conjuntura atual, um governo algorítmico, cujo poder de Estado ao qual estamos cognitivamente adequados passa longe não apenas da população, mas também dos agentes públicos. De que maneira os algoritmos que povoam a estrutura da comunicação digital, plataformas e redes sociais são capazes de conduzir nossas ações a ponto de uma revisão dos valores do que é democracia?

Coletar, agregar e analisar dados é historicamente uma técnica de governo para controle e vigilância populacional, bem descrito na obra de Foucault. A cada dia mais aprimorada, vivenciamos a mudança de uma sociedade panóptica intramuros para uma vigilância baseada em transparência e movimentação geográfica, tornadas legíveis por meio de câmeras de vigilância de poder privado e público, além de aparelhos celulares cujos dados gerados são insumos privados.

Com isso, a colheita não tem mais a primazia do Estado tal qual conhecemos, mas de conglomerados empresariais. A competência de fazer uso dessa lógica no sentido da governamentalidade nos parece ser decisória na compreensão do tipo de democracia e seus efeitos futuros.

O como desse modelo de sociedade é o que precisa ser pensado, visibilizando interesses de grupos e acenando para as tecnologias de poder já em uso e outras em programação sobre a conduta do sujeito. É preciso inverter, com urgência, como propõe Cook, o senso comum de que "novas tecnologias impõem novas respostas políticas e legais" para a compreensão de que "políticas favorecem formas particulares de comunicação e moldam os usos aos quais as novas tecnologias são colocadas".

Políticas essas, no Brasil contemporâneo, que redescobrem e redefinem questões como o direito à comunicação, a liberdade de expressão e outros conceitos repensados e reelaborados em uma racionalidade democrática a partir da trama da propriedade de mídia, arquitetura de redes, sigilo, privacidade e propriedade intelectual. Elaborações que tornam a mídia moderna uma invenção tanto política quanto tecnológica, assim como instrumento de subjetivação em uma democracia que irrompe agora a partir de uma outra racionalidade, assegurada pelo fim da mediação possibilitada pela mídia digital.

"Em jogo está quem controla as regras do discurso público", como publicou a revista The Economist, em sua reportagem sobre o processo antitruste do Departamento de Justiça americano contra o Google, em 2020. Regras essas que são executivos não eleitos pelo sistema democrático que definem, como por exemplo, os limites da liberdade de expressão, ampliação ou restrição de circulação de informações, entre tantos outros códigos legitimados pelo Estado.

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