NULL
Glória Maria

Artigo: Mulheres negras no jornalismo, ética e responsabilidade na construção do olhar crítico

pri-1102-opiniao opinião -  (crédito: Caio Gomez)
pri-1102-opiniao opinião - (crédito: Caio Gomez)
Laila Oliveira
postado em 11/02/2023 06:00

LAILA OLIVEIRA - Jornalista, mestra em comunicação, doutoranda em sociologia (UFS) e em estudos étnicos e africanos (UFBA)

Fevereiro nos impactou com a partida de uma das maiores referências mundiais no jornalismo, Glória Maria Matta da Silva, a nossa Glória Maria, que teve seu percurso encerrado na Terra após longa batalha pela vida. Mas sua morte física não foi o fim da sua existência, pois, ao longo dos seus 73 anos, contribuiu imensamente para a população brasileira por meio do seu ofício e do seu exemplo de vida, informando, noticiando e opinando sempre a partir de um critério jornalístico de muita seriedade, com leveza e com responsabilidade ao trazer para o público fatos, arte, cultura e denúncias que promoveram educação e transformação no cotidiano das pessoas.

Eu, como mulher negra e jornalista, assim como diversas outras no país, nos encontramos na Glória Maria em algum ponto de nossa vida. Nos emocionamos com sua história, com suas entrevistas e nos inspiramos em sua altivez, elegância e coragem. Quem não se impressionou ao ouvir sua experiência no início da carreira, em um dos momentos mais difíceis do país — que foi o período da ditadura — e ela, muito segura, questionando o general João Baptista Figueiredo? Quanta ousadia e competência, uma profissional à frente do seu tempo.

Seus passos mostraram a nós, mulheres negras comunicadoras, que podemos subverter a ordem das coisas e que, mesmo numa sociedade calcada e bem estruturada no racismo e machismo, em áreas dominadas por homens brancos, podemos dar passos firmes na direção das mudanças, fazer deslocamentos. E ainda, numa perspectiva mais abrangente, ela mostrou ao mundo que o jornalismo fica imenso quando a gente foge da pretensa neutralidade que querem imputar.

As nossas existências negras atravessam o nosso fazer jornalístico e endossam o nosso compromisso com a escrita e diálogo com a população. Dessa forma, entendemos que a ideia de um público que é apenas espectador e consumidor, como se não houvesse espaço para reflexão sobre o que é noticiado, só serve para a manutenção de um sistema que ainda não nos enxerga com a caneta na mão produzindo notícias, mas como pauta e estatísticas em colunas policiais.

O mundo racista treme com mulheres negras que não se submetem, que caminham firmes, eretas e certas de que o ato de comunicar com tanta competência é algo que não vai ser abalado pelo racismo que toma conta das mídias digitais quando essas profissionais e tantas outras se tornam alvo ao ocuparem espaços que historicamente nos foram negados.

A estética também é política num mundo onde a formação e os significados são feitos também por meio de imagens, em um país que, segundo Orofino, do livro Mídias e mediação escolar, a maioria dos brasileiros consome e é formada também pela televisão. As nossas percepções de beleza, inteligência, bondade também foram construções midiáticas. Por muitos anos atribuíram aos corpos negros estereótipos negativos e de subalternidade, tanto na ficção quanto na programações jornalísticas, como apontaram produções acadêmicas como as do professor Joel Zito. Afinal, quantos anos esperamos para ver a diversidade aqui fora refletida nas telas?

Mesmo nas TVs públicas que, por definição, teriam como premissa apresentar uma diversidade de profissionais em sua programação — para que a população brasileira se visse representada — isso não ocorre. É essa ausência que indica a pesquisa de Joel Zito Onde está o negro na TV ública?, que divulgou o lastimável dado que 86% do posto de apresentadores e 93,3% no posto de jornalistas ainda são ocupados por profissionais brancos.

Contrariando essa lógica, mulheres negras que seguem ocupando espaços como aqueles que a Glória ocupou, abrindo horizontes para uma mudança sensível na comunicação, de forma crítica, humana e ética, é revolucionário. Traduz o que sentimos ao ligar a TV e ver ali a Maju em suas primeiras aparições, o coração acelera e a gente vê um novo mundo se descortinar, ouvir a Flávia Oliveira fazer análises tão precisas sobre o cenário político do país, sem medo de estar do lado certo da história. Zileide Silva, uma das primeiras jornalistas negras na TV, que tem uma longa história de carreira e compromisso com a comunicação brasileira, sem esquecer a Roberta Estrela na TV Cultura, trazendo questões como raça e gênero na televisão.

Enfim, somos tantas e diversas, fugindo da falsa narrativa, que só podemos falar sobre nossas identidades. Glória nos legou a certeza de que podemos falar sobre o que quisermos sem as amarras do que esperam de nós. Um brinde aos legados das que abriram portas e às nossas (re)existências midiáticas.

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

-->