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RACISMO

Artigo: Negra percepção - sobre mim e nós na pandemia

Enquanto eu observava com esperança a chegada da vacina e me surpreendia de forma positiva com a resposta e a solidariedade do povo brasileiro diante da pandemia e da crise que aprofundou as desigualdades

opiniao 1111 -  (crédito: Caio Gomez)
opiniao 1111 - (crédito: Caio Gomez)
postado em 11/11/2023 06:00

A pandemia acabou, contudo o vírus ainda circula entre nós, e atentar sobre esse passado recente e como a população negra recebia e respondia à crise sanitária se mostrou necessário para mim desde março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou o início da pandemia da covid-19.

Eu, que estudei comunicação e saúde e aprendi a ler os dados da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, na época em que trabalhava no Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), coordenado por Fernanda Lopes e Luiza Bairros, logo percebi que se tratava de algo sério e de uma grande onda que só estava começando a ser formada.

Muito tranquila, no conforto do isolamento social, morando em uma quadra privilegiada do Plano Piloto de Brasília, vi da janela a pandemia ganhar corpo. O racismo parecia não me alcançar, já que eu só saía do apartamento para colocar o lixo no coletor que ficava no corredor do meu andar ou para buscar alguma encomenda na portaria.

Nos primeiros meses, olhei mais para dentro. Passei a observar e a cuidar mais de mim mesma com o tempo livre que ganhei ao não ter que me deslocar para o trabalho. Contudo, meu sonho de classe média não durou muito tempo, e logo percebi que brancos e negros não estavam no mesmo barco diante de um evento sanitário global. As primeiras notícias que indicavam isso vinham dos Estados Unidos e explodiram, em especial, a partir do assassinato de George Floyd, tensionando ainda mais as relações raciais naquele país.

Do lado de cá, no Hemisfério Sul, não demorou para que os pesquisadores brasileiros identificassem que as pessoas atingidas com mais violência pela pandemia e suas consequências no Brasil eram negras. Ainda que o vírus não fizesse essa distinção de raça/cor, as desigualdades no acesso a direitos e serviços públicos, em razão do racismo institucional, se encarregaram dessa tarefa durante todo o tempo da pandemia.

O único alento nesse primeiro ano de pandemia estava em observar a ação articulada do movimento social negro, sobretudo, das mulheres negras, que insistiram em aquilombar. Era como se elas já soubessem que, em 2021, haveria uma marcha acelerada da fome e da necropolítica, arrastando corpos para sete palmos debaixo da terra. Além disso, quem acompanhava os dados poderia imaginar que estava por vir uma crise sem precedentes, diante de um negacionismo e uma descrença na ciência jamais observados neste país.

A vacina chegou, mas quase não se enxergavam idosos negros nas filas organizadas diante dos serviços de saúde. Enquanto assistia ao telejornal, me perguntava: será que idosos negros não resistiram à covid? As vacinas não estão sendo distribuídas em equipamentos de saúde próximos de onde eles vivem? Nunca soube a resposta a essas indagações, mas desconfio que ambas as suspeitas eram verdadeiras, porque, no acesso aos serviços de saúde, historicamente, a população negra está em lugar de desvantagem.

Enquanto eu observava com esperança a chegada da vacina e me surpreendia de forma positiva com a resposta e a solidariedade do povo brasileiro diante da pandemia e da crise que aprofundou as desigualdades, infelizmente percebia que uma voz antinegros, contra pobres e mulheres e antidemocracia reverberava com mais força. Essa fala passava a chancelar uma série de atrocidades noticiadas de forma superlativa pela imprensa.

Todo esse contexto me levou a libertar meus mais sinceros pensamentos. Assistir, ouvir, ler e, até certo ponto, sentir sobre o impacto da pandemia da covid-19 na vida de pessoas negras atravessou a minha escrita. Isso abriu espaço para conversas sinceras, cheias de posicionamentos, reflexões e dúvidas expressas em uma coluna mensal em um veículo de imprensa negra. Agora, essas conversas estão reunidas no livro Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia, publicado pela Dandara Editora.

O livro não analisa o período. Porém, amplifica os escritos e a voz de uma mulher negra, comunicadora e promotora da equidade de gênero e raça. Inscreve essa experiência na imortalidade, a partir do entrelaçar de letras e palavras.

*Rachel Quintiliano - Ativista e membro-fundadora da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do DF

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