Alimentação

Artigo: Consciência alimentar como ferramenta de escolha

A alimentação passou a ser defendida por bandeiras políticas, que pregam que existem alimentos bons ou ruins, a dissociando da sua evolução social e cultural

opi 0501 -  (crédito: Caio Gomez)
opi 0501 - (crédito: Caio Gomez)
postado em 05/01/2024 06:04

» MÁRCIA TERRA, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN)

Ao discutirmos como melhorar os padrões de alimentação de uma população, uma das primeiras ideias que vem à cabeça é educação nutricional. Antes de tudo, quando falamos em ensinar as pessoas a comer, precisamos primeiro estar de acordo com o que significa comer corretamente. A regra básica da boa alimentação é variedade e moderação, mas educação nutricional vai muito além.

O papel da educação nutricional é possibilitar a autonomia nas escolhas alimentares, fornecendo uma compreensão abrangente de todos os alimentos dentro do contexto de uma dieta balanceada. Trata-se de incluir, não excluir, e reconhecer as necessidades únicas e variadas de cada indivíduo. Quando as pessoas são capacitadas com conhecimentos e habilidades, elas podem navegar pelo cenário diversificado de escolhas alimentares com confiança e prazer, levando a melhores resultados de saúde e a um relacionamento mais positivo com os alimentos.

Entretanto, existem setores da sociedade que acreditam que sobretaxar determinados alimentos é uma maneira de "obrigar" as pessoas a fazerem escolhas mais saudáveis no prato. É, inclusive, uma das pautas da reforma tributária aprovada pelo Congresso Nacional. Ao longo dos meus 38 anos de carreira em nutrição, posso afirmar, com convicção, que esse tipo de regulamentação não somente é ineficaz na busca de uma alimentação saudável, como interfere no direito de escolha de cada pessoa — afinal, o que comemos faz parte da nossa cultura e história.

Atualmente, vivemos uma guerra de narrativas em que a verdade vem perdendo seu valor para factoides e opiniões rasas. A alimentação passou a ser defendida por bandeiras políticas, que pregam que existem alimentos bons ou ruins, a dissociando da sua evolução social e cultural. Nenhum alimento de forma isolada pode ser capaz de prejudicar o nível de saúde de um indivíduo. Como exemplo disso, podemos observar os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) sobre o consumo de refrigerantes açucarados: ele vem caindo ano a ano, sendo que os índices de sobrepeso e obesidade só aumentam.

É imprescindível, neste momento, quando há o risco real de os alimentos sofrerem uma tributação ainda maior do que a atual, em um país onde grande parte da população sofre para se alimentar, criarmos um pensamento crítico, aberto e esclarecedor sobre o assunto. Muitas regiões do mundo, como México e Chile, adotaram a prática da tributação, e pouco resultado se vê na melhora da qualidade da saúde das pessoas.

Muitos acadêmicos defendem esse projeto, colocando os alimentos industrializados e as bebidas açucaradas como os únicos vilões do sobrepeso e da obesidade. No entanto, um trabalho feito por economistas da Fundação Getulio Vargas (FGV), em abril de 2023, sobre obesidade e consumo das famílias brasileiras concluiu que fatores como faixa etária, renda e inatividade física são os que mais mostraram-se estatisticamente significativos para a obesidade. Portanto, fica evidente que a verdadeira transformação está atrelada a uma educação nutricional eficaz, aliada a políticas que estimulem a prática de atividade física.

Escolhas alimentares são decisões que indivíduos e famílias fazem sobre o que e como comer. Elas são influenciadas por fatores conscientes e inconscientes, e dependem da disponibilidade e acessibilidade dos alimentos, principalmente para pessoas de baixa e média renda. Mesmo com limitações, as preferências pessoais guiam como as pessoas comem. Fatores como custo, sabor, conveniência e saúde são importantes, mas são os valores culturais mais profundos que realmente definem como as pessoas decidem sobre sua alimentação. Esses valores incluem necessidades biológicas, interações sociais e a sobrevivência da civilização e são universais em todas as sociedades.

A boa nutrição é uma dança complexa entre contexto, conhecimento, comportamento, preferências pessoais, estilo de vida e circunstâncias externas. É um processo dinâmico que exige mais do que apenas entender a ciência dos alimentos. A verdadeira mudança na dieta é um desafio multidisciplinar que deve considerar toda a experiência e realidade do indivíduo — emocional, social, cultural, financeira, entre outros fatores.

A educação nutricional não deve passar por proibições, restrições ou imposições de barreiras ao acesso a determinados alimentos e bebidas. Nem pela negação do impacto que as mudanças no estilo de vida, nas estruturas familiares, nas formas de trabalho e na evolução tecnológica têm nas dinâmicas alimentares das pessoas, especialmente nos grandes centros urbanos. Reconhecer essa complexidade é o primeiro passo para o desenvolvimento de estratégias mais eficazes que ajudem não apenas a conhecer, mas também a aplicar os princípios da boa nutrição em suas vidas.

Com mais opções alimentares disponíveis, as pessoas têm mais autonomia para escolher alimentos que correspondem aos seus valores e objetivos. Políticas públicas e programas de nutrição eficazes precisam entender como os valores culturais influenciam as escolhas alimentares. E entender como esses valores podem ajudar a promover dietas mais saudáveis e sustentáveis. Justamente por isso, precisamos observar com cautela as propostas da reforma tributária que estão sendo debatidas e podem trazer cobranças extras para determinados alimentos e bebidas, limitando a liberdade de escolha de milhões de brasileiros. Impor limitações ao acesso desses alimentos e bebidas ignora a autonomia alimentar das pessoas. Os brasileiros têm o direito de tomar decisões sobre quais produtos consumir sem que isso afete seu paladar e orçamento, afinal a alimentação é parte da nossa identidade.

 

 

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