Cidadania

Análise: Novo plano para pessoas com deficiência deixa muitos de fora

O governo deveria avaliar as residências inclusivas que foram criadas e fazer mudanças nas políticas de admissão para garantir que as pessoas que moram lá queiram estar lá

opinião 1801 -  (crédito: Caio Gomez)
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postado em 18/01/2024 06:05

» Carlos Ríos Espinosa, diretor-assistente de direitos das pessoas com deficiência na Human Rights Watch

O governo federal divulgou seu novo plano de direitos humanos para os cerca de 18 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. Mas o plano Novo Viver sem Limites deixa de fora milhares de pessoas com deficiência que vivem em instituições em todo o país.

No início de setembro, ciente de que o plano seria apresentado em breve, a Human Rights Watch fez reuniões com autoridades da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência e da Presidência da República. Esperávamos que eles endereçassem nossas preocupações sobre o descaso com as pessoas com deficiência que vivem em instituições de acolhimento no Brasil.

Entre 2016 e 2018, a Human Rights Watch visitou diversas instituições para pessoas com deficiência nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e no Distrito Federal. Constatamos que milhares de pessoas com deficiência vivem em instituições, muitas delas desde a infância, com graves violações de seus direitos fundamentais. Muitas enfrentam isolamento, falta de acesso à educação, restrições ao seu direito de tomar decisões, contenções físicas e, muitas vezes, químicas, bem como empobrecimento generalizado de suas vidas.

O primeiro plano Viver sem Limites, apresentado em 2011, contemplava a criação de residências inclusivas para garantir que as pessoas com deficiência pudessem viver em comunidade. No relatório de 2018, a Human Rights Watch aponta que essas residências são um passo positivo, em comparação às grandes instituições no Brasil, algumas das quais abrigam centenas de pessoas.

No entanto, essas residências inclusivas compartilham muitos dos aspectos problemáticos de grandes instituições, incluindo o fato de seus residentes não terem permissão para exercer o controle sobre a própria vida e as decisões diárias. A maioria das pessoas com deficiência que vivem em residências inclusivas está sob curatela, com sua capacidade legal restrita, e sua existência diária completamente regulamentada pelos funcionários dessas instituições.

Muitos não têm permissão para fazer simples escolhas cotidianas que a maioria das pessoas têm garantidas, como a hora de acordar, quais atividades participar, com quem socializar e, em geral, a vida que desejam levar. Algumas residências inclusivas permitem um pouco mais de autonomia do que outras, permitindo que os residentes saiam sozinhos.

Mas o denominador comum é que as pessoas não têm a opção de decidir se querem ou não estar lá, porque não há alternativas para elas viverem de maneira independente e serem incluídas na comunidade, um dos direitos básicos estabelecidos pelo direito internacional dos direitos humanos aplicável ao Brasil.

O Novo Viver Sem Limites nem mesmo reconhece a existência dessas pessoas, demonstrando que elas simplesmente não estão na agenda das políticas públicas desenvolvida pelo governo Lula.

Em setembro, pesquisadores da Human Rights Watch entrevistaram novamente pessoas que haviam conhecido em 2016, incluindo uma mulher com deficiência física que morava em uma grande instituição transformada em uma residência inclusiva.

Desta vez, ela não pôde sequer falar livremente conosco, porque um funcionário da instituição estava sempre presente. Quando pedimos seu consentimento para a entrevista, a equipe nos proibiu, dizendo que ela não tinha autonomia para decidir sobre esse assunto e que uma ordem judicial seria necessária, já que ela estava sob curatela.

No Novo Viver sem Limites, o governo brasileiro se comprometeu a "responder à necessidade de ir além das entregas de bens e serviços à população, enfrentando de maneira sistêmica as violências e discriminações sofridas pelas pessoas com deficiência na sociedade brasileira" e a defender seus direitos humanos. Seu fracasso em explicitamente se referir às pessoas com deficiência que vivem em instituições e estabelecer ações concretas para apoiá-las com serviços na comunidade é inconsistente com esse compromisso. É ainda mais decepcionante que o governo continue confiando no modelo das chamadas residências inclusivas sem realizar uma avaliação sistemática do modelo nos locais em que foi implementado.

O Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, órgão responsável pela interpretação dos direitos estabelecidos no tratado das Nações Unidas sobre deficiência, tem repetidamente instado os países que ratificaram esse tratado, incluindo o Brasil, a se absterem de construir novas instituições e a criarem planos para a desinstitucionalização das pessoas com deficiência.

Nunca é tarde demais para o Brasil adicionar esse componente ao seu plano. Para começar, o governo deveria avaliar as residências que foram criadas e fazer mudanças nas políticas de admissão para garantir que as pessoas que moram lá queiram estar lá.

O governo deveria revisar a forma como essas residências são organizadas para que as pessoas tenham mais opções sobre seus horários e suas atividades diárias. E essas residências devem treinar suas equipes para apoiar, e não controlar, os residentes.

O próximo passo seria criar um modelo de vida comunitária independente, para que as pessoas que estão nessas residências possam fazer a transição e para que as pessoas que estão atualmente em grandes instituições possam se mudar para as residências inclusivas. O novo plano é apenas um começo, e o governo Lula não deve parar por aí.

 

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