» Lucio Rennó, professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB)
Os eventos desvendados na semana passada pelas investigações da Polícia Federal apontam para fatos extremamente graves que ocorreram no Brasil nos dois últimos anos, ao menos, da gestão do presidente Jair Bolsonaro. Há fortes indícios de que se tramou, de forma organizada e em momentos sequenciais orquestrados, a derrubada do regime democrático no Brasil. Desde 1964, o país não enfrentava a ameaça de um novo golpe vitimando a democracia. Após o processo de redemocratização, as elites e a população, embora de forma reticente e inconstante, como mostram dados de opinião pública, abraçaram o regime democrático.
Isso mudou dramaticamente de 2013 em diante, chegando ao seu ápice no governo Bolsonaro. É fato que o país viveu intenso processo de desgaste do regime, com um recrudescimento de enclaves autoritários na sociedade e nas elites políticas. A retórica autoritária voltou a ser bradada. Os violentos protestos de rua em 2013, os primeiros em sua magnitude após décadas, desencadearam um processo acentuado de queda do apoio popular aos políticos no poder e de insatisfação com o funcionamento das instituições democráticas. O humor da população azedou.
Foram vários os episódios subsequentes que pioraram a situação, incluindo crises políticas e econômicas simultâneas e continuadas, imensa instabilidade política que culminou no governo interrompido de Dilma Rousseff e fracassado de Michel Temer, o qual passou mais tempo se defendendo de tentativas de remoção do cargo do que aprovando propostas legislativas.
A turbulência política resultou na eleição de um governo de inclinação populista, antissistêmico, que, claramente, se distanciava dos partidos políticos que governaram o Brasil, e que oferecia um forasteiro (outsider) como alternativa de mudança profunda. No poder, Bolsonaro seguiu sua estratégia de ecoar as críticas às instituições democráticas, respaldado por dados de opinião pública que apontam enorme insatisfação popular com o Congresso, com partidos políticos e, crescentemente, com o Judiciário. O primeiro alvo foi o Congresso e o dito toma lá dá cá, do presidencialismo de coalizão.
Quando o risco de um impeachment se impôs, mudou de estratégia e abraçou o Centrão. Voltou, então, seus canhões para o vizinho na Praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal. Sempre apoiado por um séquito político cada vez maior, que Bolsonaro ajudaria a eleger em 2022. Seu partido, o Liberal, tem hoje a maior bancada na Câmara e a segunda no Senado. Vários governadores militam em seu campo. Trata-se de um movimento nacional.
Os enclaves autoritários ganharam as ruas e voz. A participação do ex-presidente em protestos contra as políticas de enfrentamento da pandemia de covid-19, quando apoiadores pediam golpe militar com Bolsonaro no poder, é um exemplo. Outro é a invasão de Brasília por caminhoneiros defendendo golpe no 7 de setembro de 2021, minuciosamente organizada.
O risco iminente de perder a eleição aumentou a tentação do golpe, como mostram as falas de diversos atores do governo passado. As eleições de 2022 foram marcadas pelo esforço de deslegitimação do processo de apuração e contagem de votos no Brasil, promovido por Bolsonaro. Algo que custou sua elegibilidade em 2026.
Após uma derrota apertada nas eleições, a menor margem de diferença para o vencedor em nossa história recente, as ameaças à democracia se intensificaram. Pessoas fecharam estradas, acamparam em frente a quartéis militares, depredaram o Plano Piloto duas vezes, falharam em atentado terrorista no aeroporto da capital. Estopins para o caos, justificando a necessidade de intervenção militar. Bolsonaro não entregou a faixa presidencial a Lula.
Claramente, a sucessão de eventos não foi devaneio de alguns. As instituições democráticas no Brasil sofreram forte atentado porque uma parte relevante da população não crê nelas há muito tempo. As crises políticas e econômicas de 2013 em diante, acentuaram esse quadro. Ambientes assim são propícios para o recrudescimento de enclaves autoritários. Pior, a polarização atual leva apoiadores de Bolsonaro a defenderem o ex-presidente incondicionalmente. Para esses, ele é vítima de perseguição. Bolsonaristas alegam o uso político da ação policial para prejudicá-los nas eleições municipais.
A narrativa está posta e não é favorável às instituições democráticas, que para essa parcela grande da população não funcionam bem, muito pelo contrário. Os elementos para a continuidade da crise da democracia no Brasil seguem presentes e seguimos sendo terreno fértil para aventuras golpistas. A ilusão de que as instituições funcionam é ledo engano e, mais, perigosa.
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