Artigo: Judia, mas não muito

No título que dei a este artigo está a palavra "judia". A palavra se reporta a Olga Benário que, ao que parece, para o Museu do Holocausto, "não era lá muito judia

Holocausto -  (crédito: AFP)
Holocausto - (crédito: AFP)

Jorge Antunes

* Maestro, compositor, membro da Academia Brasileira de Música e autor da ópera Olga

Cheguei às 10h e o Dr. Kracowisky me esperava na recepção. Apesar de o cônsul brasileiro Orlando Scalfo Jr. ter marcado o encontro oficialmente, especificando a razão da visita, fiquei frustrado: o Dr. Shmuel Krakowski, diretor do Yad Vashen, não se lembrava do objetivo da minha visita. Minha frustração chegou à perplexidade quando eu soube que ele nunca tinha ouvido falar em Olga Benário. Tive que relembrar tudo e até mesmo mostrar-lhe a sua própria carta. Creio que a carta de aceitação que ele me enviara em fevereiro foi feita de modo automático, sem qualquer atenção.

No título que dei a este artigo está a palavra "judia". O leitor pode ficar à vontade para considerar a palavra como sendo um substantivo ou um tempo verbal. Como substantivo, a palavra se reporta a Olga Benário que, ao que parece, para o Museu do Holocausto, "não era lá muito judia". Como tempo verbal, resulta do verbo judiar cujo uso devemos evitar por ser termo preconceituoso, como na frase que li, recentemente, no Facebook: "Agora judiam os que foram judiados".

Hoje, pelo que vi — ou não vi — no Yad Vashen, estou convencido de que a reprimenda que o ministro Israel Katz dirigiu ao embaixador Frederico Meyer foi ridícula, não me causando surpresa. O Yad Vashen e o atual governo de Israel não sabem que os laços que unem o Brasil à comunidade judaica não se resumem a Osvaldo Aranha, Aracy Moebius de Carvalho e Guimarães Rosa. Temos também Olga Benario.

Ver que o Yad Vashen e seu diretor, em 1992, desconheciam a judia Olga Benário tornava-se algo incompreensível porque, naquele ano, víamos nas vitrines das livrarias de Tel Aviv e Jerusalém a edição em inglês do livro de Fernando Morais publicado pela Grove Weidenfeld.

Era 1º de outubro de 1992 e eu, com bolsa do CNPq, dava seguimento às minhas pesquisas durante o longo período de um ano que durou meu pós-doutorado iniciado em Paris, com estágio no UPIC sob a orientação do mestre Yannis Xenakis. Minha busca era primordial para concluir o terceiro ato de minha ópera Olga. Antes, eu visitara os quatro principais locais em que Olga estivera: Barminstrasse, a prisão de Moabit e os campos de concentração de Ravensbruck e de Bernburg, hoje museus. Descobertas importantes eu fiz, as quais eu viria a incluir na ópera, convencendo o libretista Gerson Valle. Eram fatos importantíssimos não relatados nem no livro de Ruth Werner, nem no de Fernando Morais. Saliento dois dos grandes achados: a canção que Olga e seus jovens camaradas cantavam durante as ações da Juventude Comunista Alemã em 1928 e o estranho Rassenuntersuchung, exame de raça a que Olga foi submetida.

No Yad Vashen, tive acesso a vários rolos de microfilmes com reproduções de fichas com informações sobre judeus do Holocausto. Descoberta interessante fiz após a consulta no acervo completo do Yad Vashem e nas conversas com o diretor e as funcionárias: eles não davam qualquer importância ao campo de concentração de Bernburg, onde Olga foi assassinada na câmara de gás, vítima do famoso Zyklon B, o gás cianídrico. Enfim, como diria minha mãe, fui buscar lã e saí tosquiado: acabei, eu, fornecendo informações sobre Olga, informações que o diretor e sua assistente anotavam com muita atenção. Não sei se hoje, passados 21 anos, a situação é outra e se minhas informações foram levadas em conta.

A biblioteca do Yad Vashen é riquíssima em fontes primárias para quem busca pistas de familiares judeus desaparecidos. A biblioteca conta com dezenas de livros com os nomes dos passageiros judeus franceses enviados, deportados, para os campos de concentração. Foram milhares de adultos e milhares de crianças. Ainda na biblioteca, encontrei um livro com a relação completa dos nazistas filiados ao Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei que viviam no Brasil, em 1936. Encontrei também documentos secretos do Ministério das Relações Exteriores dos Estados Unidos da América com referências aos encontros e aos acordos entre Getúlio Vargas e Roosevelt. Mas não encontrei, na biblioteca, nada sobre Olga Benario.

O fato de o Yad Vashen não saber nada sobre Olga e não ter montada nenhuma homenagem ou exposição sobre ela era uma incógnita, dando lugar a diferentes interpretações. Olga não era importante judia que combatera com garra o nazismo e o fascismo? O fato de ela ter sido grande líder comunista encobria sua condição de judia?

No último 19 de fevereiro, o senhor Dani Dayan, atual presidente do Museu do Holocausto, criticou duramente Lula afirmando que a fala do presidente representava "antissemitismo flagrante". Será que o apagamento da memória de Olga Benário no Yad Vashen se tratava de "anticomunismo flagrante"?

 

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postado em 26/03/2024 06:31 / atualizado em 26/03/2024 06:31
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