Crises

Cortar a ração dos leões famintos não é boa ideia

A verdade nunca pode ser negligenciada, pois a descoberta de um falsear dos fatos agrava ainda mais a imagem da instituição, comprometendo a administração da crise

2703 opiniao -  (crédito: Caio Gomez)
2703 opiniao - (crédito: Caio Gomez)
postado em 27/03/2024 06:00

Otávio Santana do Rêgo Barros

Profissionais acostumados a lidar com crise sabem que existem duas formas básicas de controlar os leões enjaulados da opinião pública, famintos por notícias, especialmente sobre malfeitos. A primeira é dar meia ração aos animais, que não os satisfaz, mas não deixa os leões morrerem de inanição. Apresentam-se as informações de forma parcelada, amenizando o impacto final. É usada quando o conhecimento da dinâmica dos fatos não está esclarecido e, portanto, precisa-se ganhar tempo, ou, em distinta circunstância, se pretende manter o tema em evidência.

A outra, oferecer a ração completa, saciando os leões já naquele momento. Toda informação disponível é apresentada de uma só vez, deixando o assunto cair aos poucos no esquecimento. Normalmente, é usada quando se tem dados que respondem com segurança às perguntas cruciais: o que, quem, quando, onde e como.

Em ambos os casos, a verdade nunca pode ser negligenciada, pois a descoberta de um falsear dos fatos agrava ainda mais a imagem da instituição, comprometendo a administração da crise. Todavia, no mundo moderno, impactado pelas narrativas das mídias sociais e dos grupos de mensagens, surgiu uma terceira forma de lidar com a crise. Raciona-se ainda mais a comida dos leões, criando-se sucessivas crises que ofusquem as imediatamente anteriores.

Essa última opção não me parece modismo que logo passará. Manter a temperatura das narrativas elevadas, controlando-as para que não entrem em ebulição, enquanto aponta-se o indicador para outro fato ou pessoa, será a técnica mais e mais empregada no domínio das "mentes e corações".

Instituições públicas ou privadas, de grande porte ou meras quitandas, autoridades ou cidadãos comuns compreenderam que a maneira de ocupar espaço na opinião pública mudou drasticamente das ferramentas conservadoras do rádio, jornal e TV para os avançados algoritmos presentes nos aplicativos dos mais simples smartphones.

Diante desse cenário, a geração de crise para combater a crise vem se aperfeiçoando. Os detentores de conhecimentos técnicos e instrumentos mais sofisticados mergulham na deep web, onde acreditam que estão protegidos do alcance da lei, e, agora com a poderosíssima inteligência artificial, dificultam ainda mais a identificação da fraude informacional.

Some-se a esse desafio o fato de que o campo de batalha informacional está cada dia mais encharcado pelo excesso de notícias, nivelando os grupos que fazem uma gestão profissional da comunicação, transparente e baseada na verdade, com grupos sem compromissos com valores morais da sociedade e instigados pelo quanto pior melhor. A crise do como comunicar, que está acima de todas as outras crises, vai exigir realinhamentos da sociedade que, talvez, afrontem as colunas basilares da democracia como a professamos.

Precisaremos tratar com mente despoluída, aceitando discordâncias de opinião, a concentração da produção e divulgação de notícias, a liberdade escancarada de opinião, o poder incontrolado das big techs, o uso indiscriminado da inteligência artificial, entre outros assuntos que minam a base de nossa sociedade, empurrando-nos para essa loucura diária que vivemos.

Estamos aboletados em um trem que se aproxima veloz de um desvio. Em um ramo, ele nos leva a um túnel escuro e tortuoso, cheio de incertezas sobre o que encontraremos ao seu fim, no outro, ao precipício profundo do maniqueísmo de opinião (ideológico ou não), que já conhecemos e que se mostra quase incontrolável.

Como sociedade impactada, devemos assumir o papel de maquinistas. Devemos puxar o freio de emergência para parar o trem, evitando o desastre e ganhando tempo para decidir com serenidade quais estratégias utilizar para encontrar um outro futuro. Esse que se avizinha é claramente sombrio.

A história é mestra por nos ensinar. No livro O Grande medo, Georges Lefebvre alinhavou fatos geradores que levaram ao espocar da Revolução Francesa.

Dentre os mais importantes, iluminou crises como desemprego, encarecimento dos produtos alimentícios, agitações decorrentes da miséria e crise política, essa a conturbar os espíritos, tornando os franceses mais impetuosos e, ao fim, incontroláveis diante de tantas injustiças.

Por aqui, os pretensos domadores da vontade do povo, que usam a técnica de combater crise com outra crise, deviam conhecer a obra de Lefebvre e compreender que podem perder o controle sobre a alcateia e se tornarem as primeiras vítimas a serem devoradas pelos leões.

 *General da reserva, foi chefe do Centro de Comunicação Social do Exército

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