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Do Bernabeu à Asa Sul, a bola é preta

Após um século da insurreição cruzmaltina, o racismo persiste, principalmente extracampo. "É cada vez mais triste. Cada vez sinto menos vontade de jogar", disse o atacante Vini Junior, do Real Madrid

Antes da assinautura da lei Áurea, em 3 de maio de 1888, cerca de seis leis abolicionistas foram sancionadas -  (crédito: Caio Gomez)
Antes da assinautura da lei Áurea, em 3 de maio de 1888, cerca de seis leis abolicionistas foram sancionadas - (crédito: Caio Gomez)

Ricardo Nogueira Viana* 

No início de abril, Brasília evidenciou mais um caso de racismo, só que, dessa vez, ocorrido entre adolescentes durante uma partida de futebol de salão entre duas escolas de classe média localizadas na Asa Sul. O fato aconteceu justamente na comemoração dos 100 anos do documento denominado Resposta histórica, no qual o Clube de Regatas Vasco da Gama se posiciona contra a discriminação racial no futebol e promove uma ruptura com os padrões europeus que prevaleciam na prática desportiva. São dois fatos aparentemente díspares que se interseccionam por tratarem-se de ações preconceituosas e, lamentavelmente, envolverem o esporte. Quando nossas relações sociais chafurdam, restam às leis a punição daqueles que não conseguem viver em harmonia com seus pares.

O futebol, de origem inglesa, chegou ao Brasil no início do século 20, restrito à elite dominante da época, ou seja, aos brancos e ricos. Em 1924, o Vasco da Gama protagonizou um dos mais emblemáticos e simbólicos movimentos de emancipação e redenção para o povo negro e pobre brasileiro. Após uma campanha notável, o time formado por negros e operários alcançou a primeira divisão carioca de futebol. O brilho cruzmaltino causou a ira dos concorrentes, que exigiram a expulsão de 12 jogadores para a permanência do clube na agremiação. Um ponto em comum entre os atletas excluídos era que todos eram negros ou operários. O Gigante da Colina se aquilombou e redigiu um documento manifestando-se contra o preconceito racial e posicionando-se a favor da igualdade e inclusão de todos os brasileiros. A partir daí, podemos mencionar nomes como Didi, Pelé, Vini Junior e o brasiliense Endrick.

Após um século da insurreição cruzmaltina, o racismo persiste, principalmente extracampo. "É cada vez mais triste. Cada vez sinto menos vontade de jogar", disse o atacante Vini Junior, do Real Madrid, em mais um episódio de hostilidade que sofreu no futebol espanhol. A Espanha, um país com um passado colonizador e explorador de nações que ainda sofrem com o subdesenvolvimento, assimila em sua sociedade o racismo ostensivo, mesmo em relação aos que proporcionam o espetáculo, driblam e balançam as redes. E aqui, na ex-colônia, como estamos? Nada além: Gabi Gol, Aranha, Wallace Souza, todos atletas profissionais, negros, famosos, que foram alvo de ofensas racistas enquanto exerciam os seus ofícios.

De onde partem essas ofensas? Dos torcedores, que refletem uma parcela significativa da sociedade, que, diga-se: é mais abastada, frequenta os estádios e vê nas pessoas negras suas próprias frustrações, permitindo-se impor uma hierarquia histórico-socialmente construída que não reconhece os afrodescendentes, independentemente de sua classe social, por seus talentos e ideias. De um grande estádio a uma plateia de um jogo entre adolescentes, o cenário muda, mas o produto é o mesmo: uma sociedade doente, preconceituosa e autoritária, com uma diferença sensível; no caso ocorrido na capital, os envolvidos eram garotos.

É preciso questionar: esses púberes já nasceram odiando outros pela cor da pele? Será que não são capazes de respeitar as diferenças? Certamente, esse desamor foi cultivado desde suas tenras idades. Duas escolas de classe média, com um adendo: um dos times tinha jovens negros em sua composição. Se a vitória não veio por meio dos gols, a escola da "Casa Grande" mirou no estereótipo: "macaco, filho de empregada, pobrinho".

Aparentemente, são palavras morfologicamente diferentes, mas foram usadas como adjetivos pejorativos para discriminar. Ali não havia animais, mas sim filhos de empregados que construíram este país por meio de açoites, estupros e mortes; foram relegados às margens desta sociedade que até hoje os invisibiliza; que se homizia diante de estatísticas indignas, como desemprego, analfabetismo, baixos salários e ocupações informais. Agora, resta identificar quem eram os verdadeiramente pobres? Os pobres de valores, os pobres de espírito e de humanidade.

O mais repugnante é que nosso caos social se manifeste no esporte; um dogma do movimento humano; uma expressão do ser; que sempre fincou balizas contra as desigualdades e injustiças. Brasília completa 64 anos, uma das cidades mais segregacionistas do mundo e que acautela os maiores índices de crimes de injúria racial do país. Quando não conseguimos viver em comunidade, respeitando o próximo em sua essência, acabamos no Direito Penal. Nesse estágio final, é crível que nossa sociedade está em ruínas. Citando o refrão da música da Plebe Rude: "Oh, o concreto já rachou!". 

*Delegado chefe da 35ª DP e professor de educação física

 

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postado em 24/04/2024 06:00
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