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A maior polêmica da Madonna

Carreira da pop star é cheia de episódios também vividos por profissionais comuns e associados ao desenvolvimento de burnout

Se até a Madonna enfrenta esses desafios, por que não aconteceria com qualquer um de nós? -  (crédito: Reprodução/Itaú/Twitter/X)
Se até a Madonna enfrenta esses desafios, por que não aconteceria com qualquer um de nós? - (crédito: Reprodução/Itaú/Twitter/X)

A retrospectiva dos 40 anos de carreira da Madonna revela várias razões para uma grande celebração, abrangendo sua contribuição para a música, suas inúmeras inovações, reinvenções e transgressões de estilo e comportamento, além de seu engajamento com o feminismo (às vezes, controverso) e sua luta contra a discriminação enfrentada pela comunidade LGBTQIA e HIV numa época em que não era nada conveniente se posicionar dessa forma.

São temas que já geraram e continuam a causar muita polêmica, mas, talvez, estejamos ignorando uma questão importante: num momento de mudanças em nossas relações com o trabalho, em que discussões sobre burnout estão em alta e a geração Z pede (ou recebe...) demissão em massa, ainda é possível vislumbrar uma carreira longa e digna de celebração?

Se você já está pensando em desistir desse texto por achar absurdo alguém considerar a arte uma profissão ou porque é impossível comparar a carreira de uma pop star à de reles mortais, peço que continue e se permita se surpreender um pouco. Algumas questões sobre a nossa relação com trabalho não fazem esse tipo de distinção.

Voltemos à diva. A icônica Blond Ambition já havia se tornado um grande sucesso quando lançaram o documentário sobre os bastidores da turnê Na cama com Madonna. Polêmico na era pré-mídias sociais (e ainda hoje seria) pela exposição da intimidade da artista, o filme também foi revelador ao mostrar que, por trás de todo o glamour e perfeição do show, havia uma quantidade imensa de trabalho árduo e contratempos. E o fato de Madonna mesma ter que lidar com essas questões nos ensina uma lição valiosa: não importa o quão famoso alguém seja ou o quão excelente seja a sua equipe ou estrutura, os problemas sempre estarão presentes e, muitas vezes, são mais complexos do que imaginamos. É nossa habilidade de identificá-los e administrá-los que nos permite perseverar.

Em outras palavras, se até a Madonna enfrenta esses desafios, por que não aconteceria com qualquer um de nós? Essa capacidade de colocar os problemas em perspectiva é essencial para evitar frustrações e prevenir o esgotamento profissional.

Outro aprendizado que Madonna nos traz é o de procurar sempre explorar novas possibilidades a partir de habilidades existentes. O propósito inicial de sua mudança para Nova York era aperfeiçoar sua dança, porém, ao chegar lá, as oportunidades que surgiram estavam principalmente ligadas a participações em musicais. Dessa forma, ela se viu na necessidade de aprender a cantar, sem, contudo, descuidar de sua paixão anterior. O resultado foi a criação de performances icônicas que deixaram sua marca em várias gerações e continuam a inspirar muitos artistas até os dias atuais.

Diante da previsão de que mais de 50% dos atuais universitários não trabalharão na área em que se especializaram, segundo artigo recente do New York Times, a capacidade de reaproveitar um conhecimento em outros campos de atuação pode ajudar a poupar energia, explorar a criatividade e proporcionar satisfação pessoal.

Confessions on a dance floor também surgiu de um projeto inicialmente frustrado. Após dedicar um longo período de trabalho à criação de uma trilha sonora, Madonna percebeu que o resultado não se concretizaria conforme desejava. Em vez de deixar todo o trabalho árduo desperdiçado, ela decidiu reinventar o material até torná-lo um de seus dos álbuns mais populares e bem-avaliados. A possibilidade de tomar decisões como essa, de ter autonomia sobre o próprio trabalho, caracteriza um dos principais fatores de proteção contra a sensação de impotência e esgotamento.

Apesar das críticas de que muitas das suas controvérsias eram apenas para atrair atenção e vantagem própria, não podemos esquecer que, nos anos 1980 e 1990, associar-se às causas defendidas por ela costumava trazer mais perdas do que ganhos. Conforme declarou em seu memorável discurso no Billboard Women in Music de 2016, "obrigada por reconhecer minha capacidade de continuar minha carreira por 34 anos diante do sexismo e da misoginia flagrantes, do bullying constante e do abuso implacável". Manter seu trabalho alinhado aos seus valores, algo tão valorizado pela atual geração Z, permitiu que Madonna fosse resiliente e persistisse.

Diante do burnout e da precarização do trabalho, persistir e encontrar significado e motivação naquilo que fazemos pode ser um grande ato de coragem. Como disse Madonna, "as pessoas dizem que sou polêmica. Mas acho que a coisa mais polêmica que já fiz foi ficar por aqui".

Helena Moura

Professora da Faculdade de Medicina da UnB e membro do grupo de Geopsiquiatria da Associação Mundial de Psiquiatria

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postado em 05/05/2024 06:00
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