Se a semana passada fosse resumida em uma imagem, a de Caramelo, ilhado no telhado de uma casa em Canoas (RS), seria boa candidata. Ali, na solidão do cavalinho literalmente sem chão, vemos o vazio de uma cidade arrasada, engolida pela fúria das águas.
Quantos anos terá essa casa? Quantas pessoas já viveram na construção submersa? De quais histórias foi palco? Teria alguém se apaixonado dentro dela? Ou mesmo morrido? Haveria um calendário na parede? Uma gravura desbotada do Coração de Jesus? O retrato colorizado de um casal de meio século atrás? Quanto orgulho devem ter sentido os proprietários, quando entraram, pela primeira vez, por sua porta?
Na imagem de Caramelo, espelha-se, também, a resiliência de quem perdeu tudo. Há de se suportar a incerteza da sobrevivência e de acreditar que o resgate vem.
Mais de 163 mil pessoas foram desalojadas pelas enchentes no estado. Por enquanto, difícil saber o que as aguarda quando a terra, enfim, secar. Sofás, geladeiras, documentos, álbuns fotográficos, roupas, enfeites, lembranças de viagem, toalhinhas de crochê engomadas, panos de prato com barra estampada, brinquedos, árvores de Natal — esses, quase certo, terão se perdido, todos, na lama.
Caramelo, o cavalinho ilhado, é, também, retrato da solidariedade. Quantas pessoas sofreram e só sossegaram quando o viram tombar, exausto, na embarcação salvadora? As mesmas, provavelmente, que sofrem a tragédia de desconhecidos, mandam donativos, oferecem abrigo, doam o tempo com trabalho voluntário. O resgate de Caramelo é um respiro de humanidade em tempos de ódio.
Porém, se a catástrofe no Rio Grande do Sul revela o que ainda há de bom em nós, também escancara a desumanidade de quem aproveita a desgraça para fazer politicagem. A fábrica de notícias falsas nunca esteve tão viva desde as eleições presidenciais de 2022; os grupos de WhatsApp alimentam-se de toda sorte de mentira para desestabilizar os esforços de resgate e acolhimento das vítimas. Mas fiquemos com a imagem do cavalinho ilhado. O resgate de Caramelo é uma réstia de esperança.
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