Artigo

Natureza imperfeita

A tragédia do Rio Grande do Sul precisa revelar o talento para comandar o povo em momento de grande angústia e necessidade

PRI-1305-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-1305-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

Ninguém avisou aos dinossauros que um enorme meteoro cairia do espaço e modificaria o clima na Terra de maneira implacável e quase definitiva. Desde o momento zero de sua inexplicável existência, a vida no planeta ocorre entre espasmos de crescimento e encolhimento, entre grandes acontecimentos climáticos que matam milhares, sejam terremotos, maremotos, tufões, sejam tempestades violentas, vulcões ou chuvas torrenciais. A natureza é imperfeita. Ela está em permanente movimento para se aperfeiçoar. O homem sofre e se obriga a conviver com os riscos. Viver é muito perigoso.

Esse movimento de sístoles e diástoles caracteriza a vida humana em qualquer quadrante do planeta. Terremotos assolam países no Oceano Pacífico, sem avisar. Matam milhares ano após ano. Para quem está distante da área de conflito, o acontecimento é apenas uma notícia de jornal. Na prática, significa a destruição de milhares de famílias e mortes em quantidades industriais. Os brasileiros que se vangloriavam de viver num país sem crises ambientais ou climáticas mudaram de opinião. Em todo janeiro morre muita gente, consequência das enchentes causadas pelas tempestades tropicais que derrubam morros e infelicitam cidades inteiras.

Nos países do Caribe, é no segundo semestre que o desastre aparece. Ocorrem os violentos tufões que varrem todo o Mar do Caribe, chegam a Miami e, às vezes, até as Carolinas, na costa leste dos Estados Unidos. O furacão Katrina destruiu New Orleans. A tragédia do Rio Grande do Sul aconteceu de um dia para outro. Não houve tempo para avisar, nem prevenir. Subitamente, tudo o que foi acumulado durante uma vida se perdeu. Não raro, a própria vida. Agora, entra em cena, o frio. O inverno está começando. É catástrofe sobre catástrofe. 

Um exemplo a ser lembrado é o de Lisboa, em 1º de novembro de 1755, Dia de Todos os Santos, uma das mais importantes datas do calendário religioso português. Às 9h40, a cidade tremeu por inteira. Enquanto a terra sacudia violentamente, um barulho subterrâneo se transformou em sonoridade terrificante. No primeiro momento houve surpresa, depois pavor, porque o chão continuava a vibrar com o som pavoroso que não se interrompia. As pessoas correram para as igrejas em busca de clemência. Não sobraram rotas de fuga. E o número de mortos no interior das igrejas terminou sendo o mais elevado.

Minutos após o primeiro choque, ocorreu outro tremor ainda mais forte, que sacudiu a cidade. Grandes palácios, ricas igrejas, museus, bibliotecas, teatros caíram por toda parte. O terreno partiu-se em várias fendas e gretas, longas e profundas apareceram no centro da cidade. Quinze minutos depois, surgiu o terceiro tremor, menor que os dois anteriores, porém mais longo. Após os três grandes choques ocorreram várias réplicas. Do chão espirrava areia e água em quantidade que assombrava as pessoas.

Foi nesse caos que emergiu a figura de Sebastião José de Carvalho e Mello, o Marques de Pombal, responsável por restabelecer a ordem pública. Ele criou o primeiro gabinete de crise de que se tem notícia. E desenvolveu o lema: "Enterrar os mortos e alimentar os vivos". Nos primeiros dias, o ministro viveu em sua carruagem e fez dela seu escritório. Escrevia bilhetes apoiados na sua perna. Dava ordens, recebia pessoas, caminhava pelos escombros e procurava renovar a confiança da população. Ele organizou os voluntários para fornecer todo tipo de alimentação. E controlou preços.

Patrulhas militares levavam ordens para enforcar saqueadores e incendiários, após julgamentos sumários. Duzentos corpos, em pouco tempo, balançavam nas colinas. O cheiro deles atraia pássaros e moscas, mas protegia a população das piores tentações humanas. Ele criou um cordão de controle em volta da cidade para impedir a fuga de homens aptos a trabalhar. É longa a relação de iniciativas do Marquês, que terminou seus dias como Conde de Oeiras. Lisboa foi reconstruída, o Marquês sobreviveu à terrível provação, governou com seriedade, expulsou os jesuítas do Brasil, brigou com os ingleses e terminou seus dias aos 83 anos, isolado pelos seus adversários.

A tragédia do Rio Grande do Sul precisa revelar o talento para comandar o povo em momento de grande angústia e necessidade. A população é generosa. As longas filas no Aeroporto de Brasília de pessoas interessadas em fazer doação de gêneros é a fotografia da bonomia brasileira. Os surfistas trouxeram seus jet skis para ajudar no resgate de pessoas. Bombeiros e policiais de todo o país correram para o Sul. A Marinha deslocou quase todo seu efetivo. Os gaúchos não foram abandonados. Falta apenas aparecer o líder para consolidar os esforços e assumir a resultante de tanto trabalho para reorganizar a vida diante da bagunça proporcionada pelas forças da natureza.

 

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postado em 13/05/2024 06:00 / atualizado em 13/05/2024 06:00
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