MARIA CONCEIÇÃO LOPES FONTOURA*
Muitas mulheres já ouviram o ditado popular "Santa de casa não faz milagre". O brilho pessoal da "santa" não recebe a reverência merecida. O lustro fica encoberto pelo manto da invisibilidade. Sua grandiosidade não é espraiada aos quatro ventos. Tais mulheres recebem a designação de "santas de casa". A escritora e poeta afro-gaúcha Fátima Farias, em magistral escrita poética, confeccionou belíssima escrevivência sobre essas personas.
O livro Santas de casa descortina vivências de mulheres fantásticas presentes na vida dessa bajeense. A escritora, poeticamente, aborda histórias interessantes, fantásticas e cativantes vividas com três dessas vidas. A autora transitou por lembranças que me convocaram a realizar imersão em minha vida. Voltei ficticiamente à cidade que abandonei há mais de cinco décadas. Revi os 19 anos em que lá morei. Encontrei minhas "santas de casa".
A viagem ao passado certamente ocorrerá para quem se dispuser a ler a obra, independentemente da idade que possua. Cada qual recordará as suas. O escrito remete a aromas, gostos, encontros, desencontros. A beleza da escrita de Fátima Farias me leva a convidar pessoas admiradoras de boa leitura a mergulharem nesse livro. Trago, para ilustrar, fragmento da obra:
"Vó Quide, mãe Maria, tia Efigênia estão vivas em minha memória e genética. (...) as considero santas milagreiras sem altar, quando em pés firmes, se sustentavam na terra de chão batido, mãos ensaboadas esfregando roupas de ricos em pedras de arroio, trocando fraldas de bundas brancas, suportando desaforos e humilhações, cozinhando cardápios caros sem sequer experimentar o sabor (...)."
A beleza da publicação de Fátima Farias tocou-me de maneira tal que me valho dela para falar de uma dessas "santas de casa" que julgo importante ser reverenciada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Digo que a persigo. Tenho sua presença, de forma indelével, em dois títulos acadêmicos. Fez parte de minha banca de mestrado nos anos de 1980. Engatei o doutorado 25 anos depois e a instei a participar da banca em que recebi o título de doutora em educação. Quem é?
Trata-se de mulher negra talentosa. Estudante de brilho farto, de inteligência aguçada e com sabedoria extraordinária, é intelectual reconhecida dentro e fora das fronteiras do Brasil. Seria faltar com a verdade, bem como demonstraria injustiça, dizer que seus talentos não foram enxergados em casa. Ela esteve presente nas redes pública e particular de educação do Rio Grande do Sul. Fez parte do Conselho Estadual de Educação. Lecionou disciplinas em cursos de graduação na Ufrgs. Participou da criação do Grupo de Estudo Sobre Cultura Negra na Faculdade de Educação, em 1988.
Sua vida está intimamente ligada à Ufrgs. Foi estudante do Colégio de Aplicação, do Instituto de Letras e dos cursos de pós-graduação em educação nos níveis de mestrado e doutorado. Essa "santa de casa" teve seus talentos reconhecidos fora do estado. A Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) a convidou para lecionar, acolheu seu talento e estimulou a sua projeção nacional e internacional. Ela é professora emérita da Ufscar.
Neste momento, a Ufrgs, por meio do Conselho Universitário, prepara-se para prestigiar essa joia rara que, com seu trabalho no campo da educação, participou da inserção do compromisso da educação brasileira com a cultura africana e afro-brasileira, ao emitir o Parecer nº 3/2004 das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana na educação brasileira.
A outorga do título de doutora honoris causa à professora Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, carinhosamente chamada de Petrô, será o reconhecimento de que "santas de casa" fazem, como sempre fizeram, milagres. Foram e são importantes para a construção de uma sociedade justa, fraterna e solidária.
Para fechar esse texto, deixo reflexão da própria celebrada "santa de casa", Petronilha Beatriz Gonçalves Silva: "Engana-se quem pensa que o Sul é branco, teríamos sido assimilados a ponto de esquecer de nossas valiosas civilizações — entre outras, os reinos do Mali, de Gana, o império do Zimbabwe, a nação da rainha Nzinga, as universidades de Tumbuctu, Gao, Djené. Engana-se quem não confia que possamos ter um projeto de sociedade em que todos, mulheres e homens, sejamos respeitados nas nossas particularidades, atuemos e participemos, cidadãos que somos, das decisões dos rumos a tomar".
*Doutora em educação pela UFRGS. Militante e integrantede de Maria Mulher — organização de mulheres negras
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br