BRUNO LANGEANI* | CAROLINA RICARDO**
Em um artigo publicado na semana passada, o executivo do conglomerado que reúne Taurus Armas e Companhia Brasileira de Cartuchos, Salésio Nuhs, defende que o problema das armas do crime no Brasil é estrangeiro. Como tem feito há anos, ele seleciona recortes de apreensões de fontes não públicas. Em um deles, recorre ao dado de que a invasão do Alemão, em 2010, apreendeu 50 fuzis de fabricação internacional, ignora, porém, o fato desse número representar apenas 20% das apreensões deste tipo de arma no Rio de Janeiro. No segundo recorte, utiliza-se de um relatório da Secretaria de Inteligência da Polícia Militar que analisa apenas 492 dos 610 fuzis apreendidos em 2023 no estado fluminense. A maior deficiência desse segundo caso não é apenas a amostra parcial, mas também o fato de classificar fuzis da marca Colt como americanos, mesmo sendo de amplo conhecimento que tais armas têm sido extensamente falsificadas por criminosos a partir de peças industriais não marcadas, as chamadas "ghost guns".
Olhar para fuzis é de suma importância, pois são mais letais, aumentando o poder das facções em resistir à lei e de submeter a população à violência. Mesmo no Rio, estado com mais fuzis nas mãos do crime no país, essa arma representa apenas 10% do total de apreensões. Dessa forma, é preciso estar ciente de que não é aleatório que representantes da indústria armamentista escolham fazer esse debate a partir de recortes específicos de apreensão que não condizem com um todo.
Como o Instituto Sou da Paz busca diagnósticos precisos que contribuam para a redução da violência armada, preferimos usar dados públicos de apreensões na totalidade. Assim, identificamos que a marca mais apreendida no Rio em 2014 era Taurus, representando 39% das apreensões. Essa pesquisa foi repetida pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) em 2019, e a Taurus continua na liderança com 34%, a estrangeira mais bem colocada tem 9%. Em 2014, o ISP também publicou que 42% das munições apreendidas no estado eram da fabricante nacional CBC, que Salésio também representa. Pesquisas recentes do Sou da Paz em outros estados mostram que Taurus, CBC e Rossi (com revólveres comercializados pela Taurus) dominam as três primeiras posições em apreensões. Em São Paulo, somadas, têm 58% do mercado do crime; em Goiás, 67%.
A preferência do crime por armas nacionais não é necessariamente por suas qualidades, mas, sim, pela disponibilidade e preço. Após esses dados, fica claro por que a indústria opta por esconder suas fabricantes assinando textos apenas em nome da Associação Nacional das Indústrias de Armas e Munições (Aniam) e porque prefere discutir o mercado ilegal com recortes específicos.
Voltemos aos fuzis das facções criminosas. A flexibilização das leis de armas no governo Bolsonaro permitiu que atiradores esportivos tivessem até 30 fuzis. Um exemplo do impacto dessa permissividade é o do Vitor Rebollal, traficante de armas, que comprou 26 fuzis da Taurus para revender ao Comando Vermelho, mas foi interceptado pela polícia. Outro esquema criminoso desvendado pela Polícia Civil de São Paulo prendeu um CAC que comprava fuzis diretamente da Taurus com registros falsos, depois revendia as armas ilegalmente. A empresa apenas se posicionou de forma contrária a tais excessos depois que Bolsonaro perdeu as eleições.
Ao varrer para baixo do tapete os dados que mostram sua presença no crime, a indústria armamentista brasileira visa evitar ser responsabilizada pelas mortes causadas por armas de fogo no país. Assim, influenciou parlamentares a reduzir significativamente os impostos que pagará após a reforma tributária.
Caso esteja realmente interessada em verificar a participação de suas armas no crime, que financie um esforço independente a ser realizado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública para coletar laudos periciais de todas as armas apreendidas durante um mês no país para identificação das marcas e nacionalidades. Se o resultado confirmar a liderança da Taurus e outras empresas nacionais nas armas usadas em crimes, estamos seguros de que a Aniam aceitará um aumento de impostos que atenue os prejuízos causados por seus produtos na discussão da reforma tributária.
*Mestre em Administração e Política Pública pela Universidade de York e consultor sênior do Instituto Sou da Paz
**Advogada, socióloga e mestra em filosofia do direito pela USP. É diretora-executiva do Instituto Sou da Paz