Crise Climática

Tragédia de muitas faces no Sul

O que mais me impactou ao chegar ao cenário de guerra do estado do sul não foram os estragos das águas, mas o testemunho de dor e o desespero gravado no rosto de tantos que perderam tudo

O primeiro abrigo a ter a conectividade por wi-fi gratuita é o do campus da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), na cidade de Canoas -  (crédito: Mauricio Tonetto / Secom)
O primeiro abrigo a ter a conectividade por wi-fi gratuita é o do campus da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), na cidade de Canoas - (crédito: Mauricio Tonetto / Secom)

Quando cheguei para a cobertura do Correio em Porto Alegre, no início de maio, encontrei uma cidade em colapso, imersa na inundação e na escuridão. Agora, com as águas baixando, a noção da tragédia se materializa de forma mais concreta.

Mesmo o olhar treinado do repórter acaba turvado pela emoção de ver a minha cidade natal arrasada, um cenário de destruição sempre acompanhado do odor repugnante das águas fétidas que cobriram as ruas das minhas andanças da juventude.

Em situações como essa tragédia que acontece no Rio Grande do Sul, muitas vezes é difícil manter a objetividade exigida pela função de repórter. Com muitos afetos e parte da minha história nessas terras, partilhei esse sentimento de luto e até de um certo descrédito com tudo que vi nesse lugar que tem uma história e tradição tão singulares e, ao mesmo tempo, tão brasileiras.

Mas o que mais me impactou ao chegar ao cenário de guerra do estado do Sul não foram os estragos das águas, mas o testemunho de dor e o desespero gravado no rosto de tantos que perderam tudo, até mesmo seus entes queridos. Pessoas que não choram apenas pelo tijolo e cimento das suas casas, mas por parte importante da própria identidade, sedimentada nos locais onde construíram, ao longo dos anos, as suas histórias de vida.

E para contarmos um pouco dessas história, enfrentamos os mais diversos contratempos. Só conseguimos chegar ao estado, com o aeroporto da capital alagado, com a ajuda da Força Aérea, que nos levou até a Base Aérea de Canoas, cidade que teve o maior número de desabrigados. De lá, ir para as outras localidades foi mais um desafio: sem transporte público e uma pequena oferta de táxis e carros de aplicativo, contamos com caronas e a solidariedade do povo que, mesmo entristecido, nos recebia com carinho e reforçava a importância de contarmos para o resto do Brasil o que acontecia por lá.

Com muitas cidades e bairros inacessíveis, ou interligados apenas por estradas precárias, como aconteceu por semanas em Porto Alegre, os problemas de mobilidade da reportagem foram enormes. Já no segundo dia, depois de visitar um abrigo em Canoas, ficamos por quase seis horas esperando um reboque após perdermos dois pneus do carro ao passar por um buraco na rodovia coberta pelas águas.

Mesmo molhados, seguimos e, apesar dos percalços, percorremos o estado e continuamos contando aos leitores do Correio algumas das histórias que testemunhamos. Para isso, fomos até mesmo onde só de barco se chegava, navegando por ruas que foram transformadas em caudalosos rios.

E, nesse caminhar, até nas histórias mais tristes, sempre testemunhamos a ajuda e o voluntariado de todo o país que atuou alimentando, também de esperança, gaúchos e gaúchas que, agora, precisam reconstruir um estado arrasado.

O que acontece no Rio Grande do Sul já é a maior tragédia climática do país, mas, infelizmente, não é uma novidade no noticiário. Precisamos decidir, como sociedade, não ter mais essas manchetes em nossos jornais, e isso só será possível com a criação de políticas públicas de longo prazo para a prevenção e a mitigação desses eventos, que devem acontecer com mais frequência em tempos de mudanças climáticas.

 

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postado em 07/06/2024 06:00
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