ANTONIO CARLOS HIGINO DA SILVA*
Seria uma grande alegria começar dizendo que, atualmente, vivemos em uma sociedade que suplantou plenamente as mazelas do colonialismo ou que não há em nossas democracias qualquer vestígio dessa herança. Nesse esforço, faço-me algumas questões. Que histórias contaríamos ao descrever uma realidade onde já teríamos superado apagamentos e silenciamentos provenientes de nossa diáspora forçada? Será que esse texto estaria escrito em iorubá, banto ou seguiríamos em pretoguês? Conseguiríamos nos afastar de tal maneira de eventos como a escravidão, o racismo, o machismo, a misoginia ou de qualquer outro tipo de posse de um ser humano por outro a ponto de a redação deste artigo demandar notas de rodapé para explicá-los? Lamentavelmente, as respostas a isso evocam realidade tão distante que me forçam a conduzir as próximas linhas deste texto no sentido contrário à direção que realmente desejo.
Inicialmente, preciso lembrar que o referido colonialismo é parte de um processo histórico ainda em curso que ficou conhecido como modernidade. Esta última, majoritariamente, consagrou-se como um ideal evolutivo, relacionado à primazia da racionalidade, a seus consequentes avanços tecnológicos e às revoluções burguesas dos séculos 18 e 19, as quais concorreram para a consolidação dos estados nacionais. A partir dessa ótica, consequentemente, esses elementos conduziriam a uma redefinição dos laços sociais, extinguindo a exploração proveniente do trabalho compulsório e ampliando os direitos políticos sob a égide de um novo indivíduo, o cidadão. O colonialismo seria apenas efeito colateral que se resolveria com os avanços da modernidade.
Contudo, rupturas e continuidades presentes nesse transcurso permitem constatar que, paradoxalmente, só há modernidade porque existe colonialismo. Isto é, os avanços alcançados por uns ocorrem em função dos retrocessos vividos por muitos outros. E a legitimação desse tipo de relação social baseou-se, e ainda se baseia, na pior invenção do mundo branco — ou seja, o negro. Essas abstrações, apoiadas em pseudociências, dão suporte à ideia de raça e, consequentemente, ao racismo, condenando diversas experiências do modo de vida não branco.
Assim, mesmo após o continente americano ter vivido quase 400 anos de escravidão, ao fim desta, a despeito de todas as mudanças políticas, sociais, econômicas e científicas, o neocolonialismo retomou uma série de atrocidades contra povos africanos e asiáticos ao fim do século 19. Como se não bastasse, as políticas de apartheid na África do Sul e nos Estados Unidos (Leis Jim Crow) mantiveram a desigualdade social entre colonizados e colonizadores. No Brasil, em pleno século 21, o sorrateiro mito da democracia racial continua cotidianamente violentando negros e negras diante dos olhos garços de uma justiça cega. Portanto, só posso concluir que a redefinição das relações sociais nas nações modernas nunca pretendeu conferir cidadania a todos os indivíduos.
Destarte, a ideia de nação como elemento aglutinador dos mais diversos sujeitos e culturas sob uma mesma bandeira mostra-se cada vez mais frágil. Isto posto, o mundo volta a flertar com o autoritarismo, com o fascismo, com o xenofobismo e com a intolerância. Como nos indicou Frantz Fanon em Condenados da Terra, foi o branco que criou o negro como ameaça fantasmagórica e fetichizada. Pois, a contar de sua superioridade bélica, estabelecida no início das conquistas colonizadoras, ele impôs seu lugar de privilégio, também conhecido como branquitude, e forjou-se como a única salvaguarda de seu brutal projeto civilizacional.
Com isso, a tão sonhada cidadania esvai-se em ilusória representação de pluralidade que induz os excluídos, ironicamente, a um reativo desejo de alcançar igualdade por meio do projeto de dominação do colonizador. A fantasia subvertida nessa representação serve ao propósito de ocultar que, nessas condições, tal convivência igualitária constitui uma impossibilidade. Pois, enquanto o negro e as manifestações de sua cultura forem um fantasma para o processo civilizatório, em contrapartida, o êxito desse projeto civilizacional só se realiza por meio do branco e da submissão ao mito da branquitude. Nada muda.
Enfim, não queremos privilégio, apenas inclusão para escapar da armadilha que nos espreita a cada esquina. Chega! Não nos cabe viver submetidos a uma lógica onde estar dentro é estar fora de si e estar fora é estar dentro de estigmas que negam nossa humanidade. Sobre isso eu poderia escrever muito mais. Entretanto, esse tempo já passou.
*Doutor em história e escritor
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