ANDRÉ RICARDO NUNES MARTINS — Jornalista, membro da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF)
É fato que o multiculturalismo e a relevância das questões raciais ganharam novo patamar no começo deste milênio. A agenda política ao redor do globo que o diga. Na sociedade estadunidense, isso ficou ainda mais explícito. Depois da passagem pela Casa Branca de Barack Obama, o primeiro presidente negro daquele país, há uma forte probabilidade, em menos de 20 anos, de a grande potência do Norte ser governada, a partir de janeiro de 2025, por uma mulher com ascendências asiática e afro-americana.
Foi um avanço a ascensão de Kamala Harris, senadora pela Califórnia, à vice-presidência no atual mandato (2021-25), precedida por sua boa performance nas primárias de 2019/20 e pela sábia decisão do candidato democrata de 2020, o senador Joe Biden, em escolhê-la para companheira de chapa. Enquanto Obama é filho de uma mulher branca dos Estados Unidos e de um imigrante queniano, Kamala tem mãe indiana e pai jamaicano. Ambos com carreira acadêmica notável e que imigraram para os Estados Unidos no começo da década de 1960. Kamala é vinculada à Igreja Batista e casada há dez anos com o advogado judeu-norte-americano Douglas Emhoff.
Na corrida para a Casa Branca em 2008, Obama teve que lidar com acusações de não ter nascido em território americano — uma exigência legal, a ponto de fazê-lo expor sua certidão de nascimento do Hawaí. Agora, Kamala foi questionada antes mesmo de ser nomeada candidata pelo Partido Democrático por ninguém menos que seu oponente, o ex-presidente Donald Trump.
A acusação é a de que ela sempre se apresentou como cidadã de ascendência indiana e que somente de uns tempos pra cá, teria assumido sua identidade afro-americana, insinuando interesse político na suposta mudança, a saber, obter vantagem junto ao eleitorado negro. A vice-presidente respondeu de forma contundente e elegante. Evitou polemizar nos termos tacanhos do empresário. Denunciou o racismo explícito e expressou que a nação merece um presidente melhor, sugerindo alguém antirracista, não misógino, que não apela a baixarias.
Toda essa polêmica de ânimo político-eleitoral fez-me lembrar a contribuição da psicóloga clínica e educadora estadunidense Maria P. P. Root. Num artigo para o livro Teorias Críticas de Raça: Texto e Contexto [Blackweel Publishers, 2002], Root, que tem se especializado em pesquisas sobre famílias multirraciais, identidade multirracial, competência cultural etc., argumenta que "o racismo é simultaneamente ambivalente, arbitrário e rígido" (id.: 356).
A autora propõe uma Declaração de direitos para pessoas mestiças — aliás o título de seu artigo. "Tenho o direito de: (i) não justificar minha existência nesse mundo; (ii) não manter as raças separadas dentro de mim; (iii) não ser responsável pelo desconforto dos outros com minha ambiguidade física; (iv) não justificar minha legitimidade étnica". E, numa perspectiva propositiva: "Tenho o direito de: me identificar diferentemente (v) do que estranhos esperam que eu me identifique; (vi) de como meus pais me identificam;(...) (viii) em situações diferentes; (...) (x) de mudar minha identidade ao longo da minha vida — e mais de uma vez; (xi) ter lealdades e me identificar com mais de um grupo de pessoas; (xii) escolher livremente com quem quero fazer amizade e amar."
Eis o referencial sobre livre expressão das pessoas mestiças em um mundo hostil que cobra rigidez na pertença racial, nas lealdades sociais, políticas e ideológicas. Aqui, no Brasil, a depender do tom de pele e curvatura dos cabelos, é comum que mestiços sofram menos dissabores por preconceitos e discriminações. Fala-se no diapasão da cor — quanto mais escura a tonalidade da pele, mais caro cobra o racismo o preço da existência e mesmo do sucesso. Essa perspectiva é uma realidade.
Não obstante, urge que tal realidade não se preste a arrefecer a consciência de identidade e pertencimento de pessoas mestiças. Que a vinculação de um dos pais, avós ou bisavós com etnias não marcadas pelo racismo não sirva para desmobilizar uma tomada de consciência da própria história e um chamado interno por verdade, justiça e compromisso.
A eleição americana definitivamente não é assunto nosso. Independentemente da torcida que tenhamos, deve-se reconhecer e exigir o mínimo, a bem da civilização. Identidade, pertença racial é algo sério que constitui a dignidade da pessoa humana. Tirar partido do assunto, ainda mais de forma desrespeitosa, preconceituosa, com fins de marketing político, fere as regras da disputa política civilizada e da ética pública. A sociedade estadunidense e o mundo merecem mais e melhor.
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