Artigo

Falta de concorrência é ameaça ao transporte rodoviário de passageiros 

O setor atua sob um modelo ultrapassado, dominado por poucas empresas que mantêm seus privilégios

Novas tecnologias estão mudando a maneira como as pessoas se locomovem em todo o mundo, inclusive no Brasil -  (crédito: Ana Rayssa/Esp. CB/D.A Press)
Novas tecnologias estão mudando a maneira como as pessoas se locomovem em todo o mundo, inclusive no Brasil - (crédito: Ana Rayssa/Esp. CB/D.A Press)

ANDRÉ PORTO —  Diretor-executivo da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec)

País de dimensões continentais e uma das maiores economias do mundo, que possui empresas competitivas globalmente oferecendo produtos e serviços de ponta, o Brasil, paradoxalmente, ainda mantém importantes setores da economia funcionando como se estivéssemos no século passado. É o caso do transporte rodoviário interestadual de passageiros.

De tempos em tempos, surgem vozes no debate público tecendo elogios à atividade e como está estruturada hoje. Recentemente, neste jornal, um representante das empresas que dominam o transporte rodoviário de passageiros há décadas “alertou” sobre os “perigos” que uma maior concorrência no setor poderia causar. Nada mais falso que essa argumentação.

O transporte rodoviário regular de passageiros (Trip) no Brasil está longe de ser as mil maravilhas que as empresas que controlam esse mercado apregoam. Em 2023, 43 milhões de brasileiros utilizaram o ônibus regular para viagens entre estados. Dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) mostram que o sistema regular não atende nem metade do total de cidades: cobre diretamente, apenas, 37% dos 5.570 municípios.  Ou seja, há um deficit na oferta do serviço, o que encarece e compromete a qualidade para os usuários.

E, infelizmente, iniciamos mais um ano longe da perspectiva de tornar esse modal de transporte realmente eficiente e acessível a todos os brasileiros. As empresas incumbentes do setor, na prática, mantêm um oligopólio da atividade e contam com uma regulamentação que cria empecilhos reais a um aumento de concorrência.

Novas tecnologias estão mudando a maneira como as pessoas se locomovem em todo o mundo, inclusive no Brasil. Empresas e plataformas digitais criaram modelos e sistemas tecnológicos capazes de incrementar o serviço com qualidade, ofertas de trechos, segurança, opções de horários e viagens mais acessíveis. E o melhor disso tudo é que os novos formatos não excluem o tradicional: é possível que haja a convivência harmoniosa entre os serviços, tal como começou a acontecer em nosso país, pois há espaço para todos — os resultados financeiros das empresas tradicionais têm demonstrado isso.

Para mudar a realidade do transporte rodoviário de passageiros no Brasil é fundamental que novas empresas tenham oportunidade de ingressar no setor para que ocorra a inovação. E que fique claro: há companhias qualificadas tecnicamente para contribuir no desenvolvimento do transporte rodoviário de passageiros. 

Foi o que aconteceu na Europa. Ao contrário do que os defensores da atual reserva de mercado alegam, a abertura do setor beneficiou e continua beneficiando os usuários. Alemanha, França e Itália introduziram, entre 2013 e 2015, uma série de medidas regulatórias, removendo limitações ao desenvolvimento da malha rodoviária. Por meio de regimes de autorizações, novos operadores não foram mais obrigados a ter frotas próprias ou contratar diretamente motoristas, mas deveriam garantir que os ônibus cumprissem todos os requisitos obrigatórios de segurança e que os condutores possuíssem as devidas habilitações e treinamento.

A flexibilização permitiu a entrada de mais empresas no setor, baixou preços e aumentou a qualidade do serviço prestado. As passagens de ônibus nesses países são até 68% mais baratas quando comparadas com outros modos de transporte. A cobertura de destinos cresceu 237% no número de municípios atendidos, beneficiando principalmente cidades com menos de 100 mil habitantes.

O impacto social também é claro, com o maior acesso das populações mais vulneráveis. Na Alemanha, 60% dos viajantes de ônibus ganham até um salário mínimo, e mais de 40% têm entre 16 e 35 anos. E, ainda, 13% dos passageiros afirmam que não viajariam sem a redução de preços promovida pela abertura do mercado.

Na contramão da abertura de mercado, há o exemplo da Espanha, o último país a preservar o mercado fechado no continente, indo contra a diretriz da União Europeia e contra seus próprios órgãos técnicos.  A Espanha tem o preço por km mais alto da Europa. Comparados à Alemanha e à França, os espanhóis pagam passagens que são até 37,9% mais caras:  arcam com preços em média de 0,079 euros por km, contra 0,049 euros nas rotas francesas e 0,061 euros nas rotas alemãs — e o cenário, assim como aqui, é de disputas intermináveis entre reguladores e o mercado que só prejudicam o cidadão.

No Brasil, entrou em vigor, em fevereiro do ano passado, depois de quase uma década de debate, um novo Marco Regulatório do Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros. Poderia ter sido um momento de modernização do setor. A resolução, no entanto, até hoje não produziu efeitos. Além de contrariar decisão do STF, porque não atende o que está previsto no regime de autorização, trouxe severas restrições ao ingresso de novas empresas, a ponto de ser questionada judicialmente nos últimos meses.

Que não fiquem dúvidas: o setor atua sob um modelo ultrapassado, dominado por poucas empresas que mantêm seus privilégios. As passagens são caras, a frota precisa ser modernizada e as linhas são insuficientes para atender os mais de 5 mil municípios brasileiros.   

André Porto - Opinião
postado em 22/01/2025 05:00
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