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Estela nas nuvens: literatura infantil com DNA brasiliense

s crianças embarcaram no mesmo avião da história, com lápis de cor e papel para desenharem seus sentimentos, goiabas de lanche, flores e harmonia no jardim escolhido para o evento

Cúmulos - São nuvens brancas e fofas, com bases planas e topos que se desenvolvem verticalmente. Parecem
Cúmulos - São nuvens brancas e fofas, com bases planas e topos que se desenvolvem verticalmente. Parecem "algodões" no céu e se formam em dias claros, geralmente sem precipitações. Podem evoluir para nuvens de tempestade se crescerem muito. - (crédito: NOAA Photo Library/Wikimédia Commons)

ELISA MATTOS — Jornalista e escritora, integrante e conselheira do Núcleo de Escritoras Pretas Maria Firmina dos Reis (Nepfir), da Universidade de Brasília

Na minha estreia na literatura para a infância, eu trouxe para o livro Estela nas nuvens um capítulo da minha própria história: uma criança afrodescendente que foi gerada e criada dentro dos valores culturais, éticos e de humanidade repassados por aqueles que vieram antes, bem antes e de muito longe. E, apesar de todas as adversidades e enfrentamento das barreiras impostas por essa sociedade — que ainda carrega o ranço discriminatório e racista do colonialismo — teve uma infância segura e feliz.

Morei parte do meu tempo de menina em uma área de Brasília, ocupada por moradores que ajudaram a erguer a nova capital. Uma grande vila, até hoje chamada de Vila Planalto, área subdividida em acampamentos, localizada bem no coração do Plano Piloto.

Na década de 1960, as ruas eram de terra vermelha batida, que exalavam um gostoso cheiro molhado toda vez que cruzava com a água da chuva. No período da seca, surgiam redemoinhos que se movimentavam sem rumo e nos vestiam de poeira colorida. A gente acreditava que tinha um saci lá no meio do turbilhão, que era o responsável pelo misterioso fenômeno desvairado. 

A casa onde minha família vivia era pequena, porém confortável o suficiente para que, ali, eu me sentisse feliz. Uma cerca baixa, de ripas de madeira, nos protegia. Nos fundos, o quintal simples que tanto me encantava, e no centro do terreno, reinava uma goiabeira. Árvore baixa, de galhos tortos e lisos, que eu subia fácil para me esconder do mundo. Um recanto seguro, a amiga mais fiel e perfumada da minha infância.

Doces fragmentos da minha memória afetiva, que vieram à tona durante uma viagem de avião, meio de transporte tão necessário e útil, que, porém, provoca em mim picos de ansiedade e medo. Para distrair a tensão do voo que ensaiava turbulências, decidi escrever uma história que me levasse para outro momento.

E foi assim que surgiu a personagem Estela. Uma menina que vê a vida passear diante de seus olhos enquanto atravessa o espaço azul, dentro de uma aeronave, que ela imagina ser um bicho de ferro, de asas esquisitas e barriga barulhenta.

Lá do alto, a criança revisita a rotina dos seus dias, fala das cores, luzes e perfumes que marcam o ecossistema onde vive, o cerrado, e do lugar que ela está indo passear para brincar no mar.

Por meio da literatura é possível criar universos ou reescrever histórias. E até mudar a página da história. Muitas vezes, espera-se que as publicações de autores negros remexam nas mazelas e dores vivenciados pelo povo negro e seus descendentes. Lágrimas e sangue como pano de fundo. Elementos que alimentam o imaginário estabelecido pelo racismo enraizado na estrutura social do país.

Sim, é necessário e importante utilizar a escrita, seja literária, acadêmica ou jornalística, para denunciar as artimanhas, articulações e crimes contra a parcela maior da sociedade (pretos, pardos, quilombolas, indígenas). Fundamental. Porém, nós também podemos escrever sobre tanta coisa e de tantas maneiras diferentes.

E eu fiz a escolha de descrever o mundo encantado da menina Estela com leveza de alma, sorriso nos olhos, alegria ancestral, exaltação à vida. O meu alter ego, ainda é muito novo para ter conhecimento do processo histórico que faz parte da sua história ancestral. Porém, a menina sabe que tem a proteção infinda daqueles que não estão mais entre nós, mas ela sente a presença e conversa com eles. Essa obra pode ser descrita como um livro infantojuvenil da literatura afro-brasileira que retrata o universo lúdico e afetivo da infância.

Para fechar bem o processo de criação e escrita, e apresentar Estela nas nuvens ao seu público, o lançamento tinha que ser de acolhimento mútuo. No primeiro dia de fevereiro, em Brasília, o clima foi de festa fraternal. As crianças embarcaram no mesmo avião da história, com lápis de cor e papel para desenharem seus sentimentos, goiabas de lanche, flores e harmonia no jardim escolhido para o evento. Melhor recepção de estreia na literatura dirigida a meninada, mas que também aguça a memória afetiva dos adultos, eu não poderia desejar. Muito obrigada. Axé! 

Correio Braziliense
postado em 08/02/2025 06:00 / atualizado em 07/02/2025 06:00
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