
Em pleno domingo de carnaval, milhões de brasileiros acompanharão cada minuto de outra festa, que estará ocorrendo no Hemisfério Norte. A partir das 21h, horário de Brasília, inicia-se a 97ª edição do Oscar, com real possibilidade de o Brasil obter conquistas inéditas na indústria cinematográfica. O filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, concorre à icônica estatueta em três categorias: melhor filme, melhor filme internacional e melhor atriz, para Fernanda Torres.
Independentemente do resultado no Teatro Dolby, em Los Angeles, na Califórnia, há eloquentes razões para reconhecer os méritos de Ainda Estou Aqui. Entre os elogios mais frequentes à produção brasileira, destacam-se, em primeiro lugar, a atuação antológica de Fernanda Torres, que obteve um reconhecimento internacional poucas vezes visto em relação a uma estrela de língua não inglesa; e, em segundo lugar, a história profundamente tocante da família Paiva, destroçada pela ditadura militar, em um drama que consegue sensibilizar plateias do mundo inteiro, mesmo aquelas não familiarizadas com os tempos de exceção que vigoraram no Brasil durante 21 anos.
Existe uma miríade de explicações artísticas e mercadológicas para justificar o sucesso de Ainda Estou Aqui. A principal delas, por óbvio, é a qualidade excepcional do trabalho desenvolvido por Walter Salles e pelo elenco do filme. Há ainda a extenuante maratona de entrevistas e participação em festivais para divulgar a produção, em esforço monumental do diretor e dos protagonistas. Por fim, cite-se a qualidade do livro que inspirou a obra cinematográfica, escrito por Marcelo Rubens Paiva, autor que já havia ganhado notoriedade com Feliz Ano Velho.
Mas um mérito inquestionável de Ainda Estou Aqui é também a mensagem que ele transmite para o Brasil. Ao narrar a trajetória de Eunice Paiva e família, a obra de Walter Salles retrata igualmente o caminho trilhado por uma nação. Com extrema habilidade, o diretor exibe as transformações de um país subjugado por um regime autoritário em direção à democracia, não sem marcas profundas na alma. Até a última cena, o filme nos lembra que o sofrimento provocado por agentes criminosos no regime militar ainda aguarda a devida reparação. Trata-se de uma queixa, uma dor que não foi contemplada pela Lei da Anistia.
Mais importante, Ainda Estou Aqui mostra-se de uma atualidade perturbadora no momento em que a democracia encontra-se sob ameaça crescente e constante. No Brasil, fatos repugnantes como a trama para sabotar as eleições, o plano de assassinar altas autoridades, a destruição dos símbolos da República em 8 de janeiro e os ataques contínuos a ministros do Supremo Tribunal Federal constituem uma ameaça real, que nada tem de ficção. No mundo, o avanço de autocratas e da extrema direita põe em xeque a democracia liberal, regime construído a duras penas após os horrores de duas guerras mundiais e décadas de Guerra Fria.
Como nunca se viu, há muitas chances de Ainda Estou Aqui ganhar a premiação máxima da indústria audiovisual. Mas, afora o reconhecimento de Hollywood, o filme já conquistou o coração dos brasileiros. É seguramente uma obra-prima do cinema nacional. E, como tal, reúne as credenciais para o país valorizar sua produção cultural e adquirir a coragem de debater temas incômodos da nossa sociedade.