
Querida Anora, a gente não odeia você — nem o filme, nem a intérprete. Aliás, poucos de nós te conheciam (estávamos ocupados, atacando as redes sociais da Karla Sofia Gascón).
Então, não nos leve a mal. Nem pense que somos um povo raivoso ou deslumbrado, infantilizado, mau perdedor. Somos um pouco "quinta série", é verdade — morremos de rir quando, em Portugal, deparamos-no com palavras como "piroco", "punheta" e "trolha" (cantada, punhado e pedreiro, respectivamente). E temos nossas piadas internas, que vocês, estrangeiros, jamais compreenderão, como aquele comentário "Who is Anora in the line of the bread?", que postaram no perfil do Oscar ("Quem é Anora na fila do pão?").
Mas a verdade é que, há tempos, não tínhamos motivo para o sorriso coletivo, agora despertado pelas conquistas de Ainda Estou Aqui. Como nação, vínhamos nos desfigurando, perdendo a alegria, a fanfarrice, a cordialidade.
Vimos emergir, de uns tempos pra cá, o ódio. Vimos um parlamentar homenagear o primeiro brasileiro condenado por tortura no Brasil. Vimos esse mesmo parlamentar ser eleito à Presidência, onde achincalhou seu próprio povo, que morria de covid; atacou a imprensa, espalhou noticias falsas, recusou-se a passar a faixa ao adversário que o derrotou nas urnas, e é investigado por supostamente liderar a tentativa de um golpe militar.
Querida Anora, o pior é que o discurso do ódio e da intolerância foi absorvido por muita gente. Chegamos ao ponto de patriotismo virar sinônimo de "exigir" a anulação de eleições democráticas, de ajoelhar para pneu, de invadir a sede das instituições, vandalizar o símbolo da Justiça, defecar no órgão guardião da Constituição. Uma Constituição da qual nos orgulhamos profundamente, porque foi escrita — e, que fique claro — por parlamentares da esquerda E da direita, com o cuidado de garantir que jamais reviveríamos um regime totalitário.
Você acredita, Anora, que 40 anos depois de marcharmos pelas Diretas Já, tem gente defendendo a volta da ditadura? Gente que se refere ao período de horror com saudades, que tenta reescrever a história recente do país, apagar os capítulos de tortura, morte e "desparecimentos", soterrar os porões da barbárie?
Ainda Estou Aqui nos devolveu tudo isso. Contou a história como deve ser contada — com base em fatos exaustivamente investigados e comprovados. Mostrou aos jovens o que é viver em um país governado por armas e regido pelo horror. Nos lembrou que "é preciso estar atento e forte" para que isso jamais se repita.
Ainda Estou Aqui nos devolveu o orgulho de sermos brasileiros. Por isso, Anora, quando torcemos pela Fernanda Torres de forma tão aguerrida, não estamos apenas querendo que o mundo reconheça o inegável talento da atriz. O filme nos devolveu o sentido de povo. Estamos em um processo de catarse coletiva.
Querida Anora, espero que tenha compreendido que não é nada pessoal. E, quer saber? Amanhã todo mundo na frente da Djalma Noivas, cantando com força: "Se você fosse sincera, ôôôô, Anora, devolvia nosso Oscar agora, ôôôô, agora!"