
Cheguei a Brasília antes da inauguração. Meu pai, funcionário público, foi transferido para o que seria a futura capital do país, com muitos outros colegas de trabalho e de diferentes pastas do governo federal. A cidade em construção, sem pavimentação nem gramado, era uma festa para crianças como eu. Os redemoinhos — lacerdinhas — eram um fenômeno absolutamente novo para quem havia saído do Rio de Janeiro.
A poeira vermelha rodopiando pelo vento forte era um convite. Como não correr para entrar na roda de barro, aos nossos olhos, gigantesca? A gente não resistia. Entrávamos na roda e sorríamos muito ao ver, na face do outro, o barro nos cílios, no cabelo… Uma sujeira ímpar.
O cenário local era pleno de novidades para quem veio de uma cidade urbanizada e com várias opções de lazer. O Cerrado, com árvores que podiam ser escaladas, frutos diferentes, dando a sensação de que estávamos numa selva… Tudo, antes nunca visto, era como um grande parque de diversão.
As obras arquitetônicas de Oscar Niemeyer e o modelo urbanístico traçado por Lucio Costa deram singularidade à nova capital do país. Não à toa, a Unesco honrou a cidade com o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, no fim dos anos 1980.
No início, a pluralidade étnica e socioeconômica não fazia muita diferença na nova capital. Havia muita solidariedade e companheirismo entre todos. A escassez de recursos unia as pessoas. O transporte público era uma das dificuldades superada pela gentileza. Motoristas ofereciam carona aos que estavam nos pontos de ônibus, sem risco de violência ao caroneiro.
Aos 65 anos, Brasília continua esbelta pela sua arquitetura, com enormes canteiros verdes e céu colorido no fim das tardes. Os ipês mantêm-se fiéis às estações do ano com floração impressionante. Nas praças, as árvores frutíferas formam pomares públicos para os brasilienses. Belezas que diferenciam a cidade.
A população chegou a 3 milhões de pessoas, quase três vezes mais do que na década de 1980. A cidade tornou-se comum e insegura como tantas outras metrópoles seculares do país. A violência é assustadora, sobretudo contra as mulheres. Medo, tristeza e insegurança são sentimentos cotidianos ante os bárbaros feminicídios.
O noticiário revela o quanto a feminina Brasília perdeu o seu jeito acolhedor. A afetividade entre as pessoas foi diluída, e os gestos de generosidade não são tão intensos quanto no passado. Mas ainda temos muita gente preocupada com os seus iguais em condições desumanas de vida.. Essa mudança é fortemente percebida nas áreas periféricas do Distrito Federal, desprovidas dos cuidados necessários. São zonas ocupadas pelos mais pobres, onde faltam equipamentos e serviços públicos adequados, e sobram violência e tragédias. O Censo de 2022 revelou que o Setor Habitacional Sol Nascente é a segunda maior favela do país — isso sem contar com o vizinho Pôr do Sol.
O avanço da idade, normalmente, faz-nos rever comportamentos e atitudes. Passou da hora de uma reflexão que leve Brasília a repensar as políticas públicas, de cada cidadão rever a sua relação com os iguais. Ainda há tempo de ressuscitar os sentimentos e atos que nos tornam diferentes entre as espécies, recuperando a generosidade, a cordialidade e o bom senso nas relações humanas.