
Marcos Ferrari — presidente-executivo da Conexis Brasil Digital; Fernando Antônio Ribeiro Soares — diretor de Regulação e Inovação da mesma entidade
O setor de telecomunicações passou por uma enorme transformação neste início de século. A popularização da internet e dos smartphones e, mais recentemente, o desenvolvimento da inteligência artificial (IA) colocou no centro das atenções a complexa infraestrutura de redes que conectam pessoas, máquinas e serviços. Sem esse intrincado aparato de cabos aéreos, terrestres e marinhos, não haveria conectividade.
Para dar conta da crescente demanda por dados, operadoras de telecomunicações investem cotidianamente pesados recursos para ampliar a capacidade de transmissão de suas redes. E aqui está o nó. A crescente demanda por dados vem sobretudo das chamadas big techs, que respondem por mais da metade do tráfego nas redes de telecomunicações. O problema é que elas não participam desses investimentos.
Para mostrar os efeitos nocivos dessa distorção, tomemos como exemplo uma analogia entre os setores de telecomunicações e ferroviário. No setor ferroviário, que é verticalmente integrado, ou seja, controla várias etapas da cadeia produtiva, o proprietário da infraestrutura (as linhas) também é proprietário da superestrutura (o trem). Essa situação confere ao proprietário poucos incentivos para disponibilizar espaço para outros possíveis usuários da ferrovia. Na prática, ele busca transportar toda a carga e, dessa forma, ampliar suas receitas e margens. No intuito de minimizar uma possível prática anticompetitiva, os reguladores desse modal de transporte buscam estabelecer o chamado direito de passagem para viabilizar o uso da infraestrutura por transportadores de carga não verticalmente integrados.
No setor de telecomunicações, temos uma situação diametralmente oposta. Primeiro porque a integração vertical não é significativa, inclusive em decorrência da massiva substituição dos serviços de voz pela comunicação por meio de aplicativos. Segundo porque o direito de passagem já existe, o que é muito bom para a eficiência dos mercados. Nesse setor, não há barreiras ao uso da infraestrutura (as redes) e tampouco as operadoras exercem qualquer tipo de controle sobre o mercado, inclusive porque a prestação desse serviço se dá em regime de concorrência efetiva e potencial.
Aqui, no entanto, ocorre uma falha de mercado completamente inversa àquela que acontece no setor de ferrovias. Nos primórdios dos anos 2000, os usuários eram atomizados ou pulverizados. Na atualidade, quatro usuários respondem por mais de 50% de todo o tráfego de dados nas redes, chegando a quase 80% no caso das redes móveis.
A falha, que contribui para a ineficiência dos mercados, é o uso intensivo dessa infraestrutura sem a devida remuneração, enquanto as operadoras de telecomunicações realizam grandes investimentos em suas redes, buscando a integração e conectividade de todo o país, o que é desejável, e a ampliação de capacidade por causa do tráfego crescente. Pode-se dizer que os usuários industriais das redes, as "big techs", praticam o denominado "efeito carona" (free-riding). O problema do free-riding ocorre quando um agente é responsável pela realização de um investimento que se torna um bem comum.
Em outras palavras, no setor de telecomunicações, há um excessivo direito de passagem. Aliás, as redes são utilizadas como se estivessem em um ambiente marcado pela Tragédia dos Comuns, teoria do ecologista Hardin Garret, publicada em 1968 pela revista Science: elas são utilizadas e exploradas sem limites, com todas as consequências que isso traz. Ainda analisando conforme a Tragédia dos Comuns, na atualidade as redes de telecomunicações são abertas para a exploração ilimitada das "big techs". Como as redes são limitadas, essa exploração industrial poderá erodir a sua capacidade para todos os usuários. No limite, o uso das redes pelos usuários industriais pode limitar o uso para os usuários comuns.
Qual a proposta para resolução desse problema? Como o próprio Hardin Garrett propõe em sua obra, é necessário que as redes de telecomunicações sejam utilizadas pelos usuários industriais de maneira privada, o que, no contexto atual, requer uma arbitragem ou uma mediação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) de forma que todos contribuam para os investimentos necessários ao desenvolvimento destas redes.