devoção

Artigo: O sagrado e o profano

A emoção que move alguém diante de Lady Gaga ou diante da imagem ainda presente do papa Francisco é a mesma: a esperança de ser visto, acolhido, salvo

Vista do Cristo Redentor no Rio de Janeiro
     -  (crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil)
Vista do Cristo Redentor no Rio de Janeiro - (crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil)

É curioso e simbólico que, em uma mesma semana, os olhos do mundo se voltem para dois altares distintos: o Cristo Redentor e a Capela Sistina. Um iluminado por holofotes, drones e celulares em modo retrato; o outro, coberto por uma névoa de incenso e tradição milenar. De um lado, Lady Gaga transforma a praia de Copacabana em um templo pop onde fiéis dançam em êxtase. Do outro, cardeais do mundo todo se reúnem para decidir quem guiará espiritualmente mais de um bilhão de católicos. São rituais que, apesar das diferenças, dialogam em um mundo onde o sagrado e o profano coexistem e disputam atenções.

O show gratuito de Lady Gaga no Rio não foi apenas uma apresentação musical. Foi um fenômeno de massas, uma peregrinação pop. Houve quem acampasse por dias, quem se tatuasse em homenagem à cantora, quem a visse como messias queer em um país ferido por preconceitos. A praia transformou-se em um santuário profano onde corpos se encontraram, se libertaram, se exaltaram. Havia um espírito coletivo ali que beirava o religioso. Quando Gaga subiu ao palco, entre lágrimas e gritos, houve algo de epifania. Se para uns era entretenimento, para outros era redenção. Era como se, por algumas horas, todos tivessem atravessado o espelho com Alice — e entrado num país das maravilhas onde o arco-íris não era só símbolo, mas trilha iluminada para uma nova realidade.

No Vaticano, por sua vez, a fumaça branca ainda é esperada como sinal da escolha de um novo papa. A liturgia secreta do conclave carrega o peso da história e da responsabilidade. Os príncipes da Igreja vestem-se de carmim e silêncio, enquanto no Rio os devotos do pop brilham em paetês e aplausos. Mas ambos os eventos tocam algo de ancestral: a necessidade humana de pertencimento, de transcendência, de fé — seja ela no divino, seja na arte.

As redes sociais são uma espécie de púlpito contemporâneo. Não à toa, trataram de estabelecer o paralelo. "Gaga é o papa da nossa geração", disse um internauta. Outro brincou: "A fumaça branca vai sair do palco quando ela cantar Born this way". Blasfêmia ou sintoma? A mesma humanidade que procura um novo guia espiritual também procura sentido nos palcos, nas telas, nos ídolos de carne.

O sagrado não está restrito às catedrais. Ele transborda para a cultura, para a arte, para as manifestações populares, assim como o profano atravessa os dogmas. Talvez estejamos vivendo um tempo de ressignificação da fé — não em oposição à religião, mas como expansão dela. Porque, no fundo, a emoção que move alguém diante de Lady Gaga ou diante da imagem ainda presente do papa Francisco é a mesma: a esperança de ser visto, acolhido, salvo. Há profetas que usam batina e que usam salto alto.

 

postado em 05/05/2025 04:10
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