Visão do Correio

O juiz universal e o protocolo para julgamento com perspectiva racial

Em sociedades desiguais, a discriminação é reproduzida e mantida com suporte em redes de sentidos que desqualificam de forma generalizada membros de certos grupos sociais

 04/04/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil.  Brasilia - DF. Acervo histórico no Memorial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal TJDFT. -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
04/04/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Acervo histórico no Memorial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal TJDFT. - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

FÁBIO FRANCISCO ESTEVES, juiz de direito

Quando cursava direito aprendi que os casos eram resolvidos com o uso, pelo juiz, da técnica do silogismo jurídico: diante do fato, invoca-se determinada previsão legal, e por fim, realiza-se a subsunção do fato ao dispositivo legal, e assim, produz-se uma decisão. Quanto a interpretar o significado da lei, desde logo confundida com a norma, o processo consistia em buscar uma boa doutrina ou uma jurisprudência sobre o assunto, para ajudar a evidenciar o significado contido no próprio texto. Isso, considerando que todos, perante o Judiciário, são iguais nos termos da lei.

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Ao me tornar magistrado, segui, por muito tempo, rigorosamente esta lógica. Bastava cumprir o rito descrito na lei processual penal para que toda a justiça penal fosse realizada, independentemente de quem fosse o réu, como se a cor, classe econômica, lugar de origem, gênero, deficiência ou geração não fossem relevantes. Quanto às circunstâncias do fato, apenas importavam aquelas que estritamente constavam das leis.

Após alguns anos, atuando como juiz, percebi que é necessário que eu reafirme, quase que diariamente, a minha competência para ocupar lugar diverso do que me prescrevem consciente ou inconscientemente. Compreendi que meu pertencimento racial atravessava as condições para o exercício da magistratura, e mesmo sendo este um espaço de poder, não escapo dos impactos do impacto das assimetrias raciais que estruturam relações sociais e instituições. A igualdade formal perante a lei só serve para um sujeito universal, cujo padrão não inclui a mim e nem a muitos dos meus. Mas, não seria eu um juiz? Para lembrar da pergunta de Sojourner Truth.

Por isso, é preciso constranger a defesa de um sujeito universal, que diluí os mundos de vidas permeados de experiências plurais, que demandam por direitos e proteção específica. Não há espaço para nos orgulharmos da riqueza cultural do nosso país, ao mesmo tempo acreditar em uma igualdade apenas formal.

Não se trata de destruir a objetividade necessária para que haja um grau mínimo de racionalidade no funcionamento do sistema de justiça. Todavia, o discurso e a prática judicial que partem da concepção universalista, seja ele a respeito do juiz, seja de quem pleiteia o reconhecimento de direitos, é produzir uma justiça que permitirá a manutenção de privilégios em favor de uns e desvantagens para outros.

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça, em novembro passado, orienta os aplicadores da lei a realizar a interpretação da legislação levando em conta os impactos da raça na interpretação e no resultado das decisões judiciais. Busca evitar que uma legislação, aparentemente neutra, possa produzir impacto desproporcional na vida da população negra. Não podemos ver a violência doméstica sem considerar o fato de que se a vítima for mulher negra, a violência e o acesso à justiça possuem contornos ainda mais negativos.

A interpretação de um texto de lei sem levar em consideração trajetórias e condições de vidas de grupos sociais, como a população negra, exposta às marginalizações e exclusões históricas e sistemáticas, compreendendo-a ficticiamente como sujeitos diluídos na universalidade, leva este grupo a experimentar o impacto desproporcional causado por decisão que, por exemplo, ignorou a condição de pessoa negra de uma criança num processo de adoção, motivo pelo qual o tratamento dos vieses cognitivos baseados em estereótipos é tarefa central da aplicação do protocolo.

Em sociedades desiguais, a discriminação é reproduzida e mantida com suporte em redes de sentidos que desqualificam de forma generalizada membros de certos grupos sociais que passam a ser considerados não merecedores de igual consideração e respeito, o que leva a lei a ser interpretada consciente, ou inconscientemente, de forma enviesada por estes sentidos, como ocorre com o perfilamento racial, em que pessoas negras são tidas como naturalmente envolvidas com atividades criminosas ou não competentes para atividades intelectuais.

Ao argumento de que a interpretação e o julgamento são realizados com o critério da generalidade e da abstração, os vieses não são detectados, embora não seja possível esconder números como os do encarceramento desproporcional de pessoas negras. O protocolo ao orientar que seja levada em conta a relevância da raça, possibilita que os vieses sejam suspensos e estereótipos devidamente escrutinados.

Essa ferramenta permite que as ausências deixem de ser normalizadas, que a existência profissional deixe de ser universalizada, não sou só mais um juiz e não julgo apenas mais uma causa neste mundo de vidas e trajetórias singulares e plurais.

 

 

postado em 21/06/2025 06:01
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