
RITA MACHADO DE OLIVEIRA,advogada criminalista, pós-graduada em direito penal e processual pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Desenvolvimento e Pesquisa (IDP/DF)
Muito se fala, no processo penal, sobre a importância do respeito à liturgia. A palavra não é usada ao acaso: vem carregada de simbologia e remete à ideia de solenidade, de rito, de uma ordem necessária ao afastamento da pessoalidade e preservação dos preceitos constitucionais.
A liturgia do processo penal é o que sustenta o equilíbrio entre as partes, o respeito à dignidade das funções essenciais à Justiça e à própria integridade do julgamento. Ela não é mero formalismo: é forma com conteúdo. É a moldura que assegura que, por trás da aparência, subsista a essência e o respeito ao devido processo legal. Entretanto, nos últimos tempos, temos visto, e pouco discutido, a liturgia ser deturpada em troca de recortes viralizáveis para as redes sociais.
Como advertia Francesco Carnelutti em sua obra clássica As Misérias do Processo Penal, a solenidade que deve envolver o ato de julgar não é mero adorno cerimonial, mas um elemento essencial à preservação da autoridade e da legitimidade do processo penal. Quando essa solenidade é negligenciada — seja por desatenção dos advogados, seja por descuido dos próprios magistrados —, o prejuízo ultrapassa as partes envolvidas e atinge a própria sociedade, comprometendo a confiança coletiva na efetividade da Justiça.
Nos idos de 1957, Carnelutti denunciava os riscos da espetacularização dos julgamentos criminais, advertindo que a função jurisdicional poderia sucumbir a duas ameaças igualmente perigosas: a indiferença nos processos de menor repercussão e o clamor nos casos midiáticos. Em ambos os extremos, o equilíbrio e a racionalidade do julgamento cedem lugar a forças externas que desvirtuam a finalidade garantista do processo penal.
As audiências públicas, que outrora representavam o ápice da ritualística processual, vêm sendo gradativamente convertidas em espetáculos midiáticos. O tom das falas se altera, o tempo da escuta se reduz, o contraditório se dissolve entre risos e intervenções performáticas. O advogado — figura essencial à administração da Justiça, é deslegitimado em cena aberta. Tornou-se personagem incômodo, quase um obstáculo ao enredo pré-fabricado que se deseja apresentar à plateia digital.
E esse fenômeno não é isolado — ele ecoa em uma cultura social cada vez mais seduzida pelo efêmero, pelo viral, pelo "engajável". Uma cultura que transformou o julgamento penal em produto de consumo imediato, embalado em vídeos curtos, com legendas chamativas, trilha sonora dramática e um clímax humilhante. Não é mais a técnica que se destaca, mas a espetacularização da humilhação. Não é mais a argumentação que convence, mas o deboche que diverte. E quando o processo é consumido como entretenimento, a Justiça se esvazia de sentido.
Assistimos a uma inversão trágica: a forma, em vez de proteger o conteúdo, o aniquila. A audiência não é mais lugar de escuta, mas de exposição. O julgamento, não mais destinado a formar uma convicção racional, passa a buscar aplausos e curtidas. E nesse cenário, o direito de defesa, por mais que permaneça formalmente assegurado, é esvaziado materialmente. Defesa não se faz apenas com o direito de falar — mas com o direito de ser ouvido com seriedade, com igualdade e com respeito.
É preciso reafirmar, com toda a contundência: o devido processo legal não é uma cortesia do Estado ao acusado. É uma cláusula civilizatória. Um limite ao poder punitivo, uma trincheira contra os excessos autoritários.
E o respeito à advocacia não é uma concessão graciosa: é um imperativo constitucional. Desqualificar a palavra do advogado, ainda que de forma sutil, ainda que por meio de ironias, é desrespeitar a própria estrutura do sistema de Justiça. E quando isso é transmitido, em recortes viralizados, para uma sociedade que parece somente se importar com a superficialidade, a mensagem que se transmite é a de que não há lugar, no processo penal, para a dignidade da defesa.
Em tempos de fragilidade institucional, atacar a advocacia é mais do que um gesto simbólico — é um sintoma. Um alerta de que a democracia está em estado febril.
A advocacia, no entanto, resiste. Ainda que interpelada, ainda que diminuída, ainda que olhada com desconfiança, ela resiste. Porque acredita — e precisa continuar acreditando — que o processo penal é coisa séria. Que a liberdade não pode ser tratada como pauta de entretenimento. E que justiça de verdade não se faz com cortes, mas com conteúdo, com técnica e com dignidade.