
NATÁLIA FIGUEIREDO, mestre em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, gerente de políticas públicas da Proteção Animal Mundial
Aflexibilização do licenciamento ambiental representa não apenas um retrocesso, mas sim, um ataque direto à vida da fauna silvestre, aos ecossistemas, aos animais de criação e à saúde pública. Tudo isso será a consequência do aumento do desmatamento, da poluição, da perda de biodiversidade e do risco de novas zoonoses com a aprovação do vergonhoso PL 2.159/2021, mais conhecido como PL da Devastação.
O Brasil, país que ocupa metade da América do Sul, é uma liderança em vida silvestre, com mais de 116 mil espécies animais, além de 46 mil diferentes plantas listadas, sem contar a variedade de fungos e bactérias. Vale lembrar que a devastação, oriunda dessa flexibilização, pode atingir até espécies de outros países, se levarmos em consideração que 10% das espécies de aves encontradas em solo brasileiro são migratórias.
Para proteger esse inestimável patrimônio natural, antes da realização de obras ou atividades que tenham potencial de causar significativa degradação do meio ambiente, é indispensável o estudo prévio de impacto ambiental, conforme o Art. 225, § 1º, Inciso IV da Constituição Federal de 1988. O levantamento da fauna é uma das etapas mais importantes porque envolve vidas sencientes – ou seja, seres que assim como os humanos sentem dor, medo e angústia – que são diretamente afetadas toda vez que uma estrada, uma área de pasto ou uma hidrelétrica tomam o lugar que antes era a moradia e a referência para a localização de água e alimentação.
Nesse processo de identificação, conduzido por equipes multidisciplinares, são coletados dados sobre as mais variadas espécies. Para isso, são utilizados diferentes métodos, sendo os mais conhecidos os recursos fotográficos, a contagem visual, os sensores térmicos e a gravação de sinais acústicos. Em seguida, todas essas informações são avaliadas rigorosamente e, os pareceres técnicos emitidos pelos especialistas vão indicar os riscos para as espécies catalogadas e as sugestões de possíveis ações de conservação.
Devido a relevância dessa preservação ambiental, um pouco antes da virada do milênio, a legislação brasileira deu um passo além e instituiu a Lei nº 9.985/2000, criando o Sistema Nacional de Unidade de Conservação da Natureza.
O legislador é objetivo ao detalhar, no artigo 36, que nos casos de licenciamento de empreendimentos considerados pelo órgão ambiental competente como causadores de significativo impacto ambiental — avaliação essa devidamente embasada pelo estudo de impacto ambiental e respectivo relatório EIA/Rima — o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de uma unidade de conservação do Grupo de Proteção Integral, ou seja, uma área de preservação que não envolva consumo, coleta, dano ou qualquer tipo de destruição.
Todo esse cuidado que a nossa legislação ambiental teve, nas últimas décadas, de casar o chamado progresso com a preservação dos recursos naturais e das mais variadas formas de vida – o que, convenhamos, é algo que por si só já pende desfavoravelmente para o agente afetado, no caso, o meio ambiente – vai completamente por água abaixo se esse projeto for aprovado.
Por isso, esse projeto sequer deveria retornar à discussão no Plenário da Câmara dos Deputados, e a Presidência poderia exercer sua prerrogativa de não o pautar, relegando a matéria aos porões da história. Infelizmente, o cenário é outro e há uma grande possibilidade de aprovação final do texto pela Câmara dos Deputados. Desse modo, é urgente e necessário os vetos presidenciais aos dispositivos que trazem danos irreversíveis à biodiversidade, à saúde pública e à segurança climática do país. São eles: a dispensa de licenciamento para atividades agropecuárias e outros setores econômicos, o autolicenciamento automático por meio da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), sem análise técnica prévia, e a Fragmentação normativa, ao transferir a estados e municípios o poder de conceder dispensas, criando um cenário de insegurança jurídica.
Num país como o Brasil, que sofre com incêndios, secas e inundações, parece irônico que o projeto de licenciamento ambiental ignore a crise climática e restrinja a participação de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais ao enfraquecer os mecanismos de consulta e participação das comunidades afetadas, prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
É dever do Poder Executivo proteger o meio ambiente como bem de uso comum do povo, conforme determina a Constituição Federal. O PL da Devastação é uma afronta a todos os seres vivos, por isso, só nos resta aguardar o bom senso do veto, quando o momento chegar.