
JUVENAL ARAÚJO, subsecretário de Políticas de Direitos Humanos e Igualdade Racial da Secretaria de Justiça e Cidadania do Distrito Federal
O futebol, paixão nacional e símbolo de identidade cultural brasileira, ainda carrega uma chaga grave: o racismo. Em 2023, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol registrou 136 casos no Brasil — um aumento de 38,8% em relação a 2022. Embora o crescimento também reflita maior conscientização e denúncia, é um sinal claro de que o preconceito persiste dentro e fora dos gramados. Uma pesquisa realizada em parceria com a CBF e a Nike revelou que 41% das pessoas negras que atuam no futebol profissional — entre atletas, árbitros, dirigentes e membros de comissão técnica — já sofreram racismo no exercício da função. Desses, mais da metade relatou que a violência ocorreu dentro dos estádios, por parte de torcedores, colegas de equipe, dirigentes ou membros da comissão técnica.
Episódios de injúria racial têm se multiplicado não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Da Espanha à Argentina, da arquibancada ao vestiário, do torcedor ao dirigente, o preconceito assume diversas formas e atinge diferentes espaços. No entanto, enquanto muitos ainda se limitam a manifestações simbólicas e campanhas esporádicas, iniciativas práticas e estruturadas se tornam cada vez mais urgentes. É nesse contexto que se destaca o programa Cartão Vermelho para o Racismo, promovido e idealizado pela Secretária de Justiça e Cidadania do Distrito Federal, Marcela Passamani.
Esse programa representa uma política pública de enfrentamento ao racismo no futebol com base em ações concretas, permanentes e intersetoriais. Ele prevê o letramento racial de todos os profissionais envolvidos — incluindo jogadores, árbitros, dirigentes, imprensa, seguranças e até mesmo os torcedores —, a criação de canais de denúncia, treinamentos para identificação de atos racistas e o acionamento de protocolos emergenciais durante partidas. É uma abordagem que não apenas reage aos episódios, mas que os antecipa, prevenindo-os por meio da educação e da conscientização.
O diferencial do Cartão Vermelho para o Racismo está justamente no letramento racial. Mais do que punir, é preciso educar. Muitos ainda não compreendem o que constitui uma prática racista ou relativizam esses comportamentos como "brincadeira de torcida". O letramento racial rompe com essa lógica e promove uma mudança estrutural. Ele ensina a reconhecer microagressões, desconstruir estereótipos e entender o impacto histórico e social do racismo no esporte. Esse conhecimento transforma comportamentos individuais e fortalece coletivamente a cultura da dignidade, da empatia e do respeito.
Amanhã, dia 12, durante o clássico entre Vasco e Botafogo no Estádio Mané Garrincha, em Brasília, o programa estará em campo mais uma vez. A ação contará com faixas educativas, campanhas nas placas de publicidade, distribuição de materiais informativos e a atuação de equipes treinadas para identificar e responder a manifestações de racismo. Além disso, será uma oportunidade para dialogar diretamente com o torcedor e fortalecer a cultura da denúncia e da não tolerância ao preconceito.
O envolvimento dos clubes é peça-chave nesse processo. Quando instituições como Vasco e Botafogo apoiam publicamente essas iniciativas, elas reforçam o compromisso ético com a diversidade e incentivam que suas torcidas adotem atitudes mais conscientes. Da mesma forma, o engajamento de torcedores, organizados ou não, é essencial para que o combate ao racismo ultrapasse os muros dos estádios e se espalhe por toda a sociedade.
No cenário internacional, há protocolos semelhantes. A Fifa e a Uefa aplicam campanhas como "Say No to Racism" e punem com rigor atitudes discriminatórias. No entanto, ainda é raro encontrar iniciativas que, como o Cartão Vermelho para o Racismo, combinem prevenção, educação e ação imediata. O Brasil pode, e deve, ser referência global nesse tema — e isso começa com boas práticas locais, como as do Distrito Federal.
Em um país onde mais da metade da população é negra, é inaceitável que o principal esporte nacional ainda seja palco de racismo institucionalizado. O futebol é, por natureza, plural, diverso e coletivo. Ele não pode continuar sendo um espaço de exclusão e violência simbólica. Expulsar o racismo de campo é mais do que uma metáfora: é uma necessidade urgente. E protocolos como o do Distrito Federal mostram que é possível, sim, jogar bonito também fora das quatro linhas. É tempo de virar o jogo — com coragem, com políticas públicas eficazes e com a força coletiva de quem acredita no poder transformador do esporte.