
Rárisson Sampaio — assessor político do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e advogado da Comissão de Direito Ambiental da OAB/CE; Cássia Lopes — advogada e assessora política do Inesc
No ano em que o Brasil sediará a COP30, principal evento internacional sobre mudanças climáticas e meio ambiente, o Congresso Nacional aprovou um projeto de lei que desfigura a avaliação de impactos ambientais da atividade econômica no país. O PL 2.159/2021, votado soturnamente durante a madrugada de 17 de julho, institui um marco geral para o licenciamento ambiental no Brasil, com procedimentos a serem observados pela União, pelos estados e municípios. O texto aprovado, contudo, promove uma verdadeira licença para a devastação.
É no licenciamento que o poder público, por meio de suas instituições ambientais, avalia o potencial poluidor de projetos e empreendimentos. O ato de licenciar é o momento crucial para atestar que a exploração de recursos naturais e instalação de projetos não acarretará prejuízos severos e irreversíveis à população e seus territórios, com danos à natureza, à saúde pública e à vida de modo geral.
Quando o licenciamento ambiental é fragilizado, o resultado são tragédias como o rompimento de barragens da Vale em Mariana (MG) e Brumadinho (MG), ou mesmo o afundamento de bairros inteiros pelas atividades da Braskem em Maceió (AL). Falhas no licenciamento também podem acarretar outros danos socioambientais, como o agravamento de conflitos fundiários, sobreposição de áreas de interesse ou disputa por recursos naturais.
Se essas lacunas evidenciam a necessidade de aprimoramentos no licenciamento, o que o Congresso Nacional promoveu foi uma completa subversão desse instrumento. Em vez de legislar para fortalecimento dos mecanismos de proteção ambiental e garantia de uma análise mais rigorosa, o que se viu foi o desmonte do licenciamento para "passar a boiada" e fragilizar ainda mais as regras, o que pode levar ao aumento de tragédias e conflitos.
Nessa frente da devastação, liderada por Hugo Motta e Davi Alcolumbre, tem-se a ampliação da possibilidade do autolicenciamento (LAC), mecanismo que dispensa análise prévia dos impactos para um conjunto de atividades poluidoras, bem como a instituição de uma licença especial (LAE), modalidade que favorece a pressão política em detrimento da análise técnica em projetos considerados estratégicos.
O texto aprovado ainda fragiliza a fiscalização ambiental e a aplicação de multas, limita a participação de comunidades e restringe a atuação de instituições que protegem povos e comunidades tradicionais, patrimônio cultural e unidades de conservação. Também carece de critérios para definir o potencial poluidor das atividades, o que pode levar a uma classificação mais branda para empreendimentos de alto impacto. Como agravante, áreas da Mata Atlântica são particularmente impactadas, com risco de perder o pouco que restou da cobertura vegetal.
Todas essas modificações ocorrem no momento em que o Brasil se inclina para promover um ambiente de negócios e investimentos mais alinhado à sustentabilidade. A construção da Taxonomia Sustentável Brasileira é parte desse esforço e, agora, tem um cenário incerto e desafiador para a classificação e a avaliação da conformidade de ativos sustentáveis diante da insegurança provocada pelas mudanças do novo marco do licenciamento.
Enquanto o mundo direciona o olhar para o país na esperança de soluções que fortaleçam a ação global em prol do equilíbrio climático, o Congresso brasileiro envia uma mensagem contrária ao enfraquecer justamente o arcabouço de proteção que poderia ser um diferencial competitivo. O licenciamento ambiental fragilizado, além de ser um retrocesso civilizatório, é um risco sistêmico ao próprio mercado.
Sob o discurso equivocado e antiquado de que o licenciamento representa um entrave para o desenvolvimento econômico, o Brasil dá um tiro no pé, comprometendo sua posição de liderança ambiental e dificultando a conformação de acordos internacionais que exigem compromissos e instrumentos cada vez mais alinhados à proteção ambiental, a exemplo do acordo de Associação Mercosul e União Europeia.
Há menos de um ano, firmava-se o Pacto pela Transformação Ecológica entre os Três Poderes, documento que parece ter sido abandonado pelo Congresso. Há, contudo, uma esperança para que, nos contrapesos dos Três Poderes, tamanho retrocesso seja vetado pelo presidente Lula, de modo a afastar a insegurança jurídica decorrente da inconstitucionalidade desse PL, e a consequente judicialização generalizada dos processos de licenciamento em todo o país.