
José Horta Manzano — Empresário
Pode parecer cedo, passados apenas seis meses de governo, para falar em legado da presidência de Donald Trump. Há ainda um longo caminho até o término de seu mandato, e o cenário político dos Estados Unidos anda por demais volátil. No entanto, mesmo nesse estágio inicial, já se delineiam traços que provavelmente marcarão de forma duradoura a história americana, chegando a influenciar outros países nas décadas por vir.
Trump ascendeu à presidência com um discurso duro, inflamado e nacionalista, sustentado por métodos políticos pouco ortodoxos. Seus modos abrutalhados, frequentemente à margem de práticas diplomáticas e institucionais, têm deixado marca em diversos setores da vida pública americana. O estilo de governo que impõe, centralizador e inflexível com o dissenso, é próprio de quem detém grande poder e não hesita em usá-lo até os limites — por vezes, além deles.
Espera-se, naturalmente, que esse modo de governar não vire padrão. Imagina-se — e deseja-se — que futuros presidentes dos EUA abandonem a mão pesada que Trump tem imprimido à condução do Executivo. Ainda assim, seu impacto não se limitará ao tempo presente. Em alguns aspectos, pode vir a alterar, de maneira profunda, os próprios fundamentos da cidadania americana.
Um desses aspectos é o princípio de jus soli, o direito à nacionalidade pelo local de nascimento. Embora esse conceito esteja hoje solidamente ancorado na Constituição e na cultura dos EUA, já se vislumbram sinais de que esse alicerce pode ser abalado. Os discursos e ações do presidente em relação aos imigrantes, estudantes estrangeiros e visitantes forasteiros não deixam dúvidas: o ideal de uma América aberta a quem nasce em seu solo está sob ameaça.
O jus soli — princípio segundo o qual basta nascer em território nacional para adquirir automaticamente a cidadania — é uma peculiaridade de poucos países, quase todos situados no continente americano. A razão é histórica. Quando as colônias europeias das Américas se tornaram independentes, foi necessário estabelecer critérios para definir a cidadania de cada indivíduo. Como resultado, adotou-se majoritariamente o princípio da territorialidade.
Nos Estados Unidos, o jus soli foi consagrado na 14ª Emenda à Constituição, aprovada em 1868, após a Guerra Civil, para garantir cidadania aos filhos de escravos alforriados nascidos em solo americano. Desde então, essa norma se manteve intocada. Países como o Brasil e praticamente todos os ibero-americanos valeram-se de regra semelhante para embasar sua política de nacionalidade.
Mas o governo Trump reintroduziu no debate político americano ideias há muito marginalizadas: o nacionalismo étnico, o apego a jus sanguinis (nacionalidade por filiação sanguínea) e a noção de que a cidadania deve ser um privilégio concedido, não um direito automático. O uso frequente de expressões como "raça americana" e a valorização de uma "herança nacional" restritiva dão pistas claras do caminho que Trump e seus apoiadores gostariam de seguir.
Se esse rumo se consolidar, os efeitos perigam se tornar profundos e duradouros. A revogação do jus soli representaria não apenas uma mudança legal, mas uma transformação simbólica na identidade americana. Os Estados Unidos deixariam de ser a terra de oportunidades acessível a todos para se tornarem uma comunidade fechada, definida por laços de sangue, e não mais por um contrato social baseado na inclusão e na integração.
Mais inquietante ainda é a possibilidade real de esse modelo ser exportado. A história demonstra que movimentos políticos nos Estados Unidos frequentemente repercutem em outras partes do mundo, especialmente nas Américas. Não seria impensável, portanto, que o Brasil viesse a seguir o mesmo caminho num futuro não muito distante.
Hoje, a Constituição brasileira garante a cidadania a qualquer pessoa nascida no território nacional, ainda que de pais estrangeiros. Mas num país ao qual imigrantes já não acorrem em massa e onde o tema da identidade nacional volta e meia é instrumentalizado politicamente, uma eventual mudança nesse sentido poderia passar quase despercebida. A substituição de jus soli por jus sanguinis não afetaria a maioria da população no curto prazo, o que tornaria a transição mais palatável — em todo caso, menos exposta à contestação.
Assim, o legado de Trump pode se estender muito além de suas fronteiras e de seu tempo na presidência. Ao desafiar princípios centrais do ideal democrático americano, o ex-presidente contribui para o enfraquecimento de valores universais como a inclusão, a igualdade e o direito de pertencer. Se a cidadania passar a ser tratada como um privilégio hereditário, não como um direito civil, estaremos diante de uma regressão histórica cujas consequências serão sentidas por gerações.
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