ARTIGO

Uma Justiça de Vera

Vera Lúcia é muito mais do que uma nomeação, é parte da construção republicana, é parte da restauração de um país que, por séculos, ficou na antessala da civilização

Roberto Tardelliadvogado criminalista, procurador de justiça aposentado (MPSP), integrante do grupo Prerrogativas

Há momentos em que nossas falácias são trazidas a público, nossos medos são expostos em varais esturricando ao sol, nosso patriarcalismo expulsa as crianças da sala e se embebeda do vinho extraído às veias de quem sempre explorou.

No banquete dos bem-servidos, todos sabem comer com as regras de etiqueta, ainda que o prato seja o mesmo que devoram muito antes que o samba se tornasse samba. Nessa mesa ilustre, os donos do capital até admitiriam, é divertido, que as sobras fossem levadas ao pessoal da cozinha, mas se aterrorizam quando percebem que a mesa foi invadida por alguém que jamais se consentiu, pudesse ali se sentar. É muito atrevimento que aquela que sempre foi parte da massa de manobra nas eleições quisesse, ora essa, julgar as próprias eleições, de que sempre foi escorraçada. São todos ali a favor do voto, desde que seja nos mesmos, nos de sempre.

Que mulher é essa que os desafia, sem abdicar de sua candura? Que mulher é essa que tem o destemor de olhar nos olhos dos seus pares e desconsiderar toda a diferença ali existente? Que mulher é essa que não se consegue encontrar nenhuma nódoa em sua vida? Que mulher é essa que rompeu a cozinha e dominou a sala de estar? Que mulher negra é essa que nos ensina a dignidade? Que mulher preta é essa que possui notável saber jurídico, que traz repertório de atuação, que tem história e históricos? Que mulher negra-preta é essa que atingiu a perfeita consciência histórica de raça e de gênero?

Essa mulher é Vera Lúcia. Negra e ministra, ela descortina um horizonte que sempre esteve nos acercando, mas que os véus do ódio racial e do ódio machista viviam de adiar a manhã de sol que Vera Lúcia nos anuncia.

Como diz a marchinha de carnaval, está chegando a hora: o presidente Lula terá que nomear, entre três possibilidades, aquela que caminhará no sentido de instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

É a palavra entoada no pórtico da Constituição Federal, uma espécie de resenha da saga brasileira. Ninguém conseguia nada numa ordem militar que aprofundou os estereótipos, que criou a guerra contra o crime, espremendo seus inimigos nas periferias. Ninguém veria uma pessoa negra tomando sol em Copacabana ou na área de embarque de aeroportos. No apartheid institucionalizado brasileiro, nós naturalizamos também o racismo, nós naturalizamos também a misoginia, nós tarifamos o amor oficial, atirando à marginalidade nossos milhões de irmãos e irmãs que vivem relações homoafetivas.

Vera Lúcia será uma prova definitiva de que necessitamos para que demonstremos que o racismo que nos massacra não pode morar nos corações e mentes de quem detém em mãos os destinos de mais de duzentos e vinte milhões de pessoas, que se cruzam nesses oito milhões e meio de quilômetros quadrados, a que se deu o nome de Brasil, mas que já foi de terra Vera Cruz.

Tirá-la do TSE, onde já está como ministra, representará, com todo o respeito àquelas que com ela concorrem, uma dura constatação: na hora H, o Estado racista venceu. Na hora H, a mulher negra, honrada e culta, com larga história de vida, vai ser retirada e, com sua retirada, a mensagem que virá tão clara quanto dilacerante: "Aqui, preto não fica!"

Vera Lúcia é muito mais do que uma nomeação, é parte da construção republicana, é parte da restauração de um país que, por séculos, ficou na antessala da civilização. Parece que não, mas a nomeação de Vera transcende ao próprio Poder Judiciário, que, em última análise, necessita muito mais dela, do que ela dele.

Vera Lúcia é o Brasil que sonhamos. É o Brasil que dá pé. É o Brasil que a Constituição Federal nos garantiu, nos legou e nos legitimou.

A história os fez se encontrarem, ela e o presidente que subiu a rampa com o extrato vivo da população brasileira, que jamais seria convidada ou seria permitido que acedesse tamanha simbologia, esse mesmo presidente que nomeou mulheres negras, que trouxe as mulheres negras para o centro nervoso das decisões. Todo o Brasil negro, indígena, marginalizado, esquecido, subiu a rampa naquele dia da posse em que o fascismo era vencido em uma sangrenta batalha. É esse Brasil que Vera Lúcia traz na sua ancestralidade. O Brasil de Caetés é o Brasil de Vera Lúcia, e é o Brasil que deve ser representado na Corte Eleitoral Suprema.

Que o presidente Lula não se esqueça disso: Vera Lúcia é nossa impressão digital. Nossa, quero dizer, dele, Lula.

 


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