Artigo

Um trauma de cor

A identidade do indivíduo sofre um sério abalo que, logo, se configura em adoecimento. E, se os exames da clínica médica não captam as dores da alma, os arroubos inspirados de artistas fazem o diagnóstico perfeito

racismo -  (crédito: pacifico)
racismo - (crédito: pacifico)

KÁTIA ADRIANE RODRIGUES FERREIRA — psicóloga, licenciada em filosofia; analista junguiana do IJRS; mestre em ciências médicas; promotora de saúde da população negra

 

O adoecimento psíquico ganhou proporções avassaladoras. O afastamento das atividades laborativas motivado por transtornos mentais, dobrou em 10 anos, sendo a ansiedade e os transtornos depressivos as maiores causas. Familiarizamos-nos com temas como trauma, estresse e psicossomática. O que dizer de um sofrimento invisível e de consequências tão nefastas? Realmente, é um grande desafio localizar e territorializar um sofrimento que não pode ser comprovado com exames físicos.

Até esse ponto, falamos de processos de adoecimento que acometem as pessoas sem distinção de etnia, renda e gênero. Será? E se o recorte de observação recair sobre pessoas negras? Talvez pessoas que tenham, na sua história pessoal ou familiar, a memória de vivências trágicas, associadas ao sentimento de vergonha. Vergonha entendida, aqui, como um senso íntimo de ser completamente diminuído ou ser insuficiente como pessoa, pode ser uma experiência de humilhação tão dolorosa que o indivíduo se sente roubado de sua dignidade; exposto como inadequado, mau ou digno de rejeição.

A ferida narcísica refere-se a um trauma emocional que afeta a autoestima e a percepção de si mesmo. As ideologias e práticas racistas têm efeito psicossocial sobre a pessoa negra, infligindo feridas narcísicas que levam a um distanciamento da própria imagem e identidade, e que não estão somente nos processos individuais. Estão presentes também como feridas coletivas.

A identidade do indivíduo sofre um sério abalo que, logo, se configura em adoecimento. E, se os exames da clínica médica não captam as dores da alma, os arroubos inspirados de artistas fazem o diagnóstico perfeito. Na música Identidade, Jorge Aragão diz que o "elevador é quase um templo, exemplo para minar teu sono" e manifesta a seletividade que a sociedade faz, classificando as pessoas, determinando o tipo de acesso e dando a medida da ascensão ou queda possível.

O elevador como a metáfora do mecanismo que seleciona um lugar a ser frequentado por "certas" pessoas. As estruturas que classificam e segregam estão num patamar que, de tão firmemente instalados e perpetuados, atingem o campo do sagrado. Tal qual um templo religioso, pela permanência de seu culto e ritos que o consagram. A repetição dos gestos de classificação, por critérios de diversidade, faz com que a exclusão e a mensagem de que determinados seres são inadequados para transitarem em determinados lugares se naturalizem.

Esse processo contínuo e invisibilizado "mina teu sono". Em saúde mental temos como balizadores a qualidade do sono e da alimentação. A falta do sono ou o excesso dele, são indicadores de que algo não está bem, e as consequências logo se apresentam. O analista junguiano Walter Boechat escreveu muito bem sobre isso, nos lembrando que, assim como os traumas infantis são de difícil elaboração pelo indivíduo, os traumas culturais permanecem no inconsciente cultural, provocando importantes complexos culturais. E que o "nosso povo" brasileiro ainda não elaborou, suficientemente, a experiência traumática de quase três séculos de escravização.

Os traumas gerados por mecanismos discriminatórios do racismo fomentam percepções de medo; raiva; expressões de passividade que não deixam de atormentar os negros, mesmo quando ascendem socialmente nas classes econômicas. Vide o caso do jogador de futebol Vinícius Júnior, que entre tantos outros casos, exemplifica o que aqui falamos, ou situações simples do cotidiano que, frequentemente, guardam um nível de tensão muitas vezes maior quando se trata de um indivíduo de cor escura.

Recentemente, uma série de pesquisas apontou que ser vítima de racismo traz impactos na saúde mental, comparados à vivência e às situações traumáticas. Que a discriminação tem consequências físicas e psicológicas mais duradouras do que constrangimentos pontuais. Que são fatores de risco para outros adoecimentos, como hipertensão, colesterol alto. Que as pessoas que sofreram discriminação têm 4,4 vezes mais chances de apresentar sofrimentos psíquicos como ansiedade, depressão ou dificuldade de concentração.

Neste país, que tem mais da metade da população com pele negra e passado escravocrata, é prudente fomentar reflexões sobre a contemporaneidade das marcas traumáticas e do lugar que essas imagens e memórias ocupam. E quais clamores se ocultam nesse ir e vir nas imagens de dor que se recriam a cada novo ato de discriminação — do mais ostensivo até o mais sutil. Não ver, não falar e ouvir sobre um tema, não quer dizer que ele não exista. Falemos, então, de um trauma que tem cor.

 

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Por Opinião
postado em 09/08/2025 06:00
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