ARTIGO

Tarifa social e a conta invisível do setor elétrico

A mini-reforma do setor elétrico precisa acontecer em bases mais sólidas: com um preço da energia que reflita todos os seus custos reais, inclusive os sociais, de forma clara, direta e honesta

PRI-1208-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-1208-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

CÉSAR REZENDE, advogado especialista em direito regulatório, infraestrutura e setor elétrico

O sistema elétrico brasileiro atravessa um ponto de inflexão. Entre promessas de transição energética, subsídios a renováveis e isenções para consumidores de baixa renda, cresce uma pergunta que precisa ser enfrentada com seriedade: como os custos do setor estão sendo distribuídos? Muitas dessas escolhas são feitas em instâncias técnicas e regulatórias, mas ainda carecem de maior visibilidade e compreensão por parte da sociedade.

A política tarifária aplicada é hoje marcada por assimetrias e baixa transparência, com decisões diluídas entre diferentes agentes — públicos e privados — que operam sob marcos institucionais distintos e, muitas vezes, com objetivos descoordenados. Essa fragmentação dificulta a construção de um modelo tarifário claro, compreensível e aderente aos princípios de responsabilidade fiscal e justiça social.

Um exemplo evidente é o financiamento da tarifa social. A gratuidade na conta de luz para famílias em situação de extrema pobreza é uma política correta, mas seus custos são redistribuídos dentro do próprio setor, sem explicitação adequada ao consumidor. Encargos como CDE, ESS e bandeiras tarifárias absorvem essa despesa de forma indireta, afetando todos os usuários, seja no mercado regulado ou no mercado livre, sem que isso passe por discussão orçamentária ampla.

Em julho de 2025, a Aneel aprovou o orçamento da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) no valor recorde de R$ 49,2 bilhões — um aumento de 32,4% em relação ao ano anterior. Desse total, R$ 46,8 bilhões serão repassados diretamente à conta de luz dos consumidores. Esses números escancaram o quanto o sistema permanece onerando o consumidor de forma invisível, confirmando a urgência de um debate público mais claro sobre quem paga essa conta.

Essa estrutura gera distorções preocupantes. Ao mesmo tempo em que se enxuga o corpo técnico das agências reguladoras, ampliam-se os encargos setoriais com impactos diretos na conta do consumidor. Discursos sobre a necessidade de uma transição energética ganham força, mas se impõem limites à geração descentralizada. A estabilidade do sistema é frequentemente invocada como justificativa para decisões que aumentam a complexidade tarifária, muitas vezes sem clareza sobre seus fundamentos ou impactos. Tudo isso sob a proteção do argumento técnico e da segurança energética, que acaba blindando o setor de questionamentos mais amplos por parte da sociedade.

A recente edição da Medida Provisória 1.304/2025, voltada exclusivamente à criação de um teto para os subsídios bancados pela CDE, foi difundida como resposta técnica ao desequilíbrio tarifário, mas escancara o descompromisso do setor com uma revisão estrutural profunda. O mecanismo criado para limitar os excessos, o chamado Encargo de Complemento de Recursos (ECR), transfere a responsabilidade pelo estouro orçamentário para os próprios beneficiários, mas sem que a sociedade tenha participado dessa definição. Não há clareza sobre quem, de fato, arcará com os custos residuais nem sobre como isso será fiscalizado. O efeito imediato parece ser que o anúncio do novo teto abriu espaço para uma corrida por subsídios antes que a regra comece a valer. Essa antecipação — legal, porém desigual — aprofunda a distorção de um modelo que continua tratando energia como mercadoria, e não como serviço público essencial.

A Constituição diz o contrário, trata a energia elétrica como um serviço público essencial. Mas, hoje, o setor opera à margem de um verdadeiro compromisso público. A reconstrução — que dá seus primeiros passos com a medida provisória que propõe a chamada minirreforma do setor elétrico — precisa acontecer em bases mais sólidas: com um preço da energia que reflita todos os seus custos reais, inclusive os sociais, de forma clara, direta e honesta. Assim, se garante que o compromisso com os mais vulneráveis aconteça com previsibilidade e justiça distributiva.

O anúncio feito ontem pela Aneel de que o reajuste médio das tarifas de energia em 2025 passará de 3,5% para 6,3% é mais um reflexo desse modelo que repassa custos crescentes ao consumidor sem um debate público estruturado. Segundo a agência, a alta é impulsionada pelo orçamento recorde da CDE, pela devolução menor de créditos de PIS/Cofins e pela manutenção da bandeira vermelha até novembro, fatores que aumentam diretamente o valor pago pelo usuário. Essa elevação, ainda que tecnicamente justificada, evidencia a urgência de se construir um sistema tarifário claro, previsível e socialmente justo, capaz de sustentar políticas essenciais sem recorrer à opacidade que hoje caracteriza o setor.

O Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta. Mas manter essa vantagem competitiva exige algo mais: coerência institucional, racionalidade tarifária e coragem para enfrentar os desequilíbrios que se perpetuam sob o manto da técnica e da segurança.

 

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Por Opinião
postado em 12/08/2025 06:03 / atualizado em 12/08/2025 12:39
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