ARTIGO

Quando a cidade tropeça: por que Brasília não precisa de esferas

A retirada das esferas do Setor de Diversões Norte representa uma ação fundamentada na preservação da identidade, da escala e dos atributos históricos de Brasília

PRI-2608-OPINI -  (crédito: Mauenilson Freire)
PRI-2608-OPINI - (crédito: Mauenilson Freire)

ROGÉRIO CARVALHO, diretor curador dos palácios presidenciais do Brasil, arquiteto restaurador e curador de arte

A retirada das esferas de concreto instaladas no Setor de Diversões Norte é uma medida tecnicamente imprescindível e respaldada pelo compromisso com a preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília e do Plano Piloto, tombados como patrimônio cultural brasileiro e reconhecidos pela Unesco. Brasília, concebida por Lucio Costa, é uma cidade planejada com extrema atenção à monumentalidade, à clareza dos percursos e à integração entre escalas — atributos que são diretamente violados pela introdução das esferas, que fragmentam a circulação, impõem obstáculos físicos e interferem na percepção espacial que caracteriza a cidade.

O projeto original do Plano Piloto não é apenas um conjunto de construções isoladas; ele se configura como um organismo urbano integrado, em que cada via, vazio e edificação possui função, escala e significado. O equilíbrio entre áreas monumentais e gregárias, entre eixos residenciais e áreas de lazer, cria uma leitura espacial única, que distingue Brasília de qualquer outra capital. A inserção de esferas de concreto como barreiras físicas rompe essa integração, prejudicando a experiência do pedestre, comprometendo a continuidade visual e desrespeitando a lógica de deslocamento amplo, fluido e previsível que fundamenta a cidade.

Além das questões de legibilidade urbana, há preocupações concretas quanto à funcionalidade e à segurança. As esferas são obstáculos claros para pessoas com mobilidade reduzida, usuários de cadeiras de rodas e deficientes visuais, que podem ter dificuldade em perceber e contornar esses elementos. Também aumentam o risco de acidentes para pedestres em horários noturnos ou sob baixa iluminação e representam desafios de manutenção, sendo suscetíveis a desgaste, vandalismo e necessidade constante de reparos. O impacto funcional, portanto, vai além da estética: trata-se de uma intervenção que afeta diretamente o uso seguro e inclusivo do espaço urbano.

Outro ponto crucial é o contexto cultural e patrimonial. Embora se possa argumentar que a esfera possui valor simbólico ou artístico por sua geometria universal, o simples uso repetitivo de um objeto funcional como barreira física não constitui, por si só, obra de arte. A arte pública em Brasília sempre foi integrada à arquitetura e à concepção modernista do Plano Piloto, como se observa nas obras de artistas que dialogam com a cidade, respeitando a escala, a volumetria e os vazios planejados. A introdução de elementos descontextualizados, ainda que alegadamente lúdicos ou simbólicos, compromete essa integração e transforma espaços públicos em locais com elementos genéricos, deslocados e potencialmente conflituosos com a experiência sensorial e estética do patrimônio.

É importante destacar que o tombamento de Brasília protege não apenas edificações isoladas, mas toda a configuração urbanística, incluindo seus eixos, vazios e alinhamentos. Qualquer intervenção que modifique substancialmente essa configuração — especialmente com barreiras físicas que não dialogam com o projeto original — representa uma ameaça à autenticidade e à integridade do patrimônio cultural brasileiro. A preservação do conjunto urbanístico não se limita a aspectos visuais ou históricos: ela envolve também garantir a acessibilidade, a segurança e a fruição plena de todos os cidadãos, em consonância com os princípios que fundamentaram a cidade.

Além disso, soluções alternativas já comprovadas em contextos urbanos podem cumprir a função de controle de fluxo de pedestres e veículos sem comprometer a monumentalidade e a experiência urbana de Brasília. Balizadores verticais discretos e bem sinalizados, faixas de pavimentação diferenciadas que delimitam áreas de circulação e outras estratégias de ordenamento urbano cumprem a mesma função prática, respeitando a escala, a identidade e a lógica modernista do conjunto. Diferentemente das esferas, essas soluções mantêm a fluidez e a legibilidade do espaço, respeitam a acessibilidade universal e reforçam a experiência sensorial positiva do pedestre.

Portanto, a retirada das esferas do Setor de Diversões Norte não representa uma rejeição à criatividade, à inovação ou à experimentação urbana, mas, sim, uma ação fundamentada na preservação da identidade, da escala e dos atributos históricos de Brasília. Intervenções urbanísticas e artísticas devem sempre estar a serviço da cidade e de seus habitantes, e não em conflito com o projeto original que a torna única. Garantir que cada elemento do espaço público esteja em harmonia com o conjunto urbano é assegurar que Brasília continue sendo um patrimônio cultural brasileiro e mundial, capaz de proporcionar experiências seguras, acessíveis e significativas para a população presente e para as futuras gerações.

 

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Por Opinião
postado em 26/08/2025 06:00
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