Marcelo Queiroga — médico cardiologista e ex-ministro da Saúde
A decisão da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) de não recomendar a incorporação das chamadas canetas emagrecedoras (agonistas de GLP-1) ao Sistema Único de Saúde (SUS) reacendeu um debate que mistura avanços científicos, pressão da indústria e responsabilidade fiscal. Trata-se de medicamentos que, de fato, representam uma inovação importante no tratamento da obesidade e do diabetes tipo 2, condições que afetam milhões de brasileiros e estão associadas a elevado risco de complicações cardiovasculares, renais e metabólicas.
O entusiasmo em torno das canetas se justifica: estudos clínicos demonstram redução de peso expressiva, melhora do controle glicêmico e, até mesmo, impacto positivo em desfechos cardiovasculares. Contudo, esse entusiasmo não pode ser confundido com a viabilidade imediata de incorporar tais medicamentos em um sistema universal e de acesso gratuito, como o SUS. O obstáculo é inegável: o custo elevado.
No SUS, não basta comprovar benefício clínico. A incorporação de qualquer tecnologia precisa respeitar parâmetros já estabelecidos: custo-efetividade, impacto orçamentário sustentável e aderência às diretrizes da política pública. Foi durante a minha gestão no Ministério da Saúde que, após ampla discussão técnica e democrática, foram definidos os limiares de custo-efetividade incremental aplicados atualmente. Esses parâmetros trouxeram previsibilidade, transparência e segurança institucional.
O problema central é que os agonistas de GLP-1, na prática atual, têm custo proibitivo. Um tratamento anual pode ultrapassar em muito o valor que o SUS gasta, por exemplo, com medicamentos de alto impacto já incorporados. Se a indústria farmacêutica deseja ampliar o acesso, precisa reduzir preços e aceitar compartilhar riscos.
Uma saída responsável seria a adoção de acordos de acesso gerenciado, modelo já utilizado em sistemas de saúde da Europa e em experiências pontuais no Brasil, como fizemos, de forma pioneira, em nossa gestão com o Zolgensma para o tratamento da atrofia muscular espinhal (AME). Nesses acordos, o pagamento está condicionado aos resultados clínicos alcançados: se o paciente não apresenta a melhora esperada, o sistema não arca integralmente com o custo. Além disso, a incorporação poderia ocorrer de forma gradual.
Outro aspecto que merece reflexão é a relação de algumas sociedades científicas com a indústria farmacêutica. Muitas delas, que hoje criticam a decisão da Conitec, mantêm patrocínios para eventos, apoio a diretrizes clínicas ou financiamento de pesquisas vindos das próprias empresas interessadas na incorporação. Não se trata de desqualificar tais instituições, mas é imprescindível que o público saiba da existência desses vínculos. Uma leitura crítica é necessária, sob pena de transformar o debate público em mera extensão de estratégias de marketing.
Há ainda quem defenda a transferência de tecnologia como solução estrutural. Essa estratégia, embora meritória do ponto de vista de soberania sanitária, apresenta limitações evidentes. O acordo da Fiocruz com a EMS, firmado recentemente, é exemplo disso: estabeleceu-se uma parceria para transferência dos agonistas de GLP-1 antes mesmo de se comprovar plenamente a capacidade da farmacêutica nacional de reproduzir, com a mesma qualidade e estabilidade, os medicamentos originais da Novo Nordisk. É um risco: o país pode investir por anos sem garantia de entrega no padrão exigido.
Não se trata de negar o avanço representado pelas canetas emagrecedoras. O Brasil precisa, sim, de respostas eficazes ao problema crescente da obesidade, que já atinge mais de 20% da população adulta e sobrecarrega o sistema com complicações graves. Inovações devem ser incorporadas quando se mostram sustentáveis, e não como resposta imediatista a pressões de mercado ou a discursos simplistas.
O SUS é um patrimônio coletivo, que precisa ser preservado com rigor técnico, transparência e responsabilidade. Reconhecer os benefícios clínicos das canetas emagrecedoras não significa incorporá-las automaticamente. Significa exigir preços justos, apostar em modelos inovadores de acesso, garantir monitoramento em vida real e compreender os limites de soluções como a transferência de tecnologia.
Somente assim, será possível conciliar o direito à inovação terapêutica com a sustentabilidade de um sistema universal, que atende a mais de 200 milhões de brasileiros.
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