ANA SOFIA GUERRA, psicanalista, psicóloga, embaixadora da CoPai e filha de Alceni Guerra, autor da licença-paternidade
Em 1988, o então deputado federal Alceni Guerra propôs a inclusão da licença-paternidade na Constituição. À época, a resistência era grande. Dias antes da votação, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, lhe disse que o artigo dificilmente seria aprovado.
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O momento era simbólico. Alceni havia se tornado pai havia poucos dias, quando eu nascera. Minha mãe enfrentava complicações graves no pós-parto. Meu pai se dividia entre o Congresso e uma casa com uma recém-nascida, uma esposa hospitalizada com uma depressão puerperal em curso e três filhos pequenos.
Na véspera da votação, uma noite agitada da filha caçula o manteve em vigília. Naquelas horas, formulou a estratégia para seu discurso em defesa da licença-paternidade: uma fala colérica, à altura da resistência que enfrentava. No dia seguinte, atrasado, se dirigiu às pressas ao Congresso Nacional. Ao subir à tribuna, foi anunciado por Ulysses como "o homem gestante", provocando gargalhadas gerais.
Diante dos risos, decide fazer outra coisa com seu inconformismo. Abandona o discurso raivoso e fala como pai e pediatra. Dá um testemunho comovente da própria história e de tantas famílias que acompanhara enquanto médico. O plenário, antes ruidoso, se silencia. A licença-paternidade é aprovada na Constituição Federal. Ulysses Guimarães lhe faz um pedido público de desculpas.
Trinta e seis anos depois, essa conquista segue incompleta. A Constituição garantiu o direito, mas o Congresso jamais o regulamentou plenamente. O prazo legal, estabelecido no final de 2023, venceu em 8 de julho deste ano. Ainda temos apenas cinco dias corridos de licença — um tempo irrisório diante da complexidade emocional e física do nascimento de um filho.
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Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou um requerimento de urgência para votar o PL 3.935/2008, que amplia a licença para apenas 15 dias. Apesar de representar avanço, a proposta é insuficiente. Ignora transformações sociais, evidências científicas e o debate público acumulado sobre o tema.
A Coalizão pela Licença-Paternidade (CoPai), que reúne sociedade civil, setor privado e representantes do poder público, apoia o PL 6.216/2023 e propõe, como período mínimo, 30 dias. Trata-se de uma proposta responsável, centrada na infância e baseada em pesquisas que mostram os efeitos de pais presentes nos primeiros dias da vida de um filho. Um tempo de possibilidade para que os pais sejam implicados no cuidado, afetos e responsabilidades.
Na psicanálise, a determinação biológica não é garantia de que vínculos sejam estabelecidos: toda criança precisa ser adotada. Para que um recém-nascido possa se constituir como sujeito, é necessário uma inscrição da figura paterna, que exige tempo, desejo e consentimento. O pai é parte de uma trama a três, e é o que permite que a construção de um espaço entre a mãe e o bebê seja possível, e que possibilita a inscrição na linguagem e no mundo simbólico.
Essa relação primitiva com o pai, um dos primeiros encontros de afeto e cuidado, deixa marcas. Ela tem efeitos e repercute nas relações futuras: amorosas, profissionais, sociais e consigo mesmo. A inscrição da figura paterna é uma oportunidade para que esses filhos possam construir os próprios caminhos. Para que, a partir desse vínculo, os filhos possam criar os próprios vínculos no futuro e viver com mais dignidade as ausências e separações inevitáveis da vida.
Estudos mostram que a presença do pai nos primeiros dias de um filho reduz a evasão escolar, melhores indicadores de saúde e laborais. Efeitos que têm em comum um certo modo de emancipação. Também tem efeitos nos próprios pais: fortalece os laços familiares, reduz desigualdade de gênero, aumenta o engajamento no trabalho e o senso de responsabilidade.
A licença-paternidade é um investimento. Social, econômico, afetivo. É uma questão política e também ética. Ela nasceu de um testemunho — e de uma aposta contra o cinismo e retaliações estéreis. Em 1988, meu pai inventou um outro modo de defender o que acreditava, movido pela paternidade e pelo momento histórico. Em 2025, nos encontramos com uma nova oportunidade. Trinta dias é o mínimo. Que façamos bom uso desse tempo e dos testemunhos para construir um país mais ético desde o berço.
