
NAYANE CRUZ, pesquisadora, terapeuta, gestora cultural
Vejo um homem negro encarando a estátua de Zumbi dos Palmares na praça em frente ao Conic, local icônico da zona central da capital federal. Olhar para ele é como olhar para a praça: em cores cinza e marrom. Com aspecto sujo, abandonado.
As pessoas passam os olhos por ele, mas não o veem. Conversando com o busto, levanta os olhos como se buscasse os de Zumbi, gesticula como quem tem muito a dizer. Eu o observo de longe e sinto que ele retira forças daquele lugar, que esse era um momento importante do dia. Isso me fez lembrar da primeira vez que estive ali: cheguei respeitosamente, toquei a estátua e me senti diferente, presente. Existe uma forte e verdadeira energia naquela praça que nos conecta a Zumbi, Dandara, às nossas histórias e à continuidade do que somos.
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Se essa conexão foi possível para ele e para mim, posso afirmar: esse espaço tem muito mais para oferecer à população preta de Brasília — e a todos que por aqui passarem — do que atualmente oferece. Hoje, esse espaço está abandonado, como a Praça dos Orixás. São dois espaços dedicados à cultura preta em Brasília que estão abandonados, depredados, queimados — usados, na melhor das hipóteses, uma vez por ano. Faço uma pergunta direta à população preta da cidade que busca locais para se reconhecer, para ver suas expressões culturais e valorizar nossa cultura: lembramos que temos um espaço para aquilombar nesta cidade? Se a resposta for não, saibam que o plano deles está funcionando.
Se existe um lugar onde podemos reconhecer e reconectar que nossos passos vêm de longe — de guerreiros, reis, rainhas e sábios — e fortalecer nossa existência presente, esse é um bom alvo para ser atacado. Assim como os quilombos foram. Não querem que os pretos se reúnam e sintam a mudança na vida que o aquilombamento traz. Nos afastar é nos enfraquecer e nos tornar mais vulneráveis às escravidões modernas: o individualismo crescente, o consumismo desenfreado e o distanciamento do olhar para o outro. Enquanto isso, a cidade se torna cada vez mais deles, e menos nossa.
O racismo estrutural e institucional em Brasília é um dado concreto. As políticas de igualdade racial recebem um dos menores investimentos — e os poucos espaços públicos que temos são negligenciados. Pesquisando sobre reformas, encontrei uma notícia do Correio Braziliense, de 28 de julho de 2010, anunciando que a praça passaria por reformas, sob responsabilidade da Administração de Brasília e da Prefeitura Comunitária do Setor de Diversões Sul, que firmaram um termo de cooperação para custear a manutenção. No entanto, ao consultar o Diário Oficial da União daquele período, não encontrei confirmação do investimento. Não sei o valor exato aplicado, mas quem observa a praça hoje percebe que, claramente, não houve reforma.
Essa desigualdade espacial não é fruto do acaso, mas resultado de um planejamento urbano que invisibiliza corpos e culturas negras, perpetuando exclusão e precarização. Como lembra Milton Santos, o espaço urbano brasileiro é historicamente organizado para servir aos interesses de uma minoria, enquanto exclui e marginaliza as maiorias negras e periféricas.
A ausência desses territórios de referência não afeta apenas nossa presença cultural, mas também nossa saúde mental e coletiva. Lélia Gonzalez já apontava que o sentimento de não pertencimento — imposto pelo racismo institucional — corrói a autoestima e alimenta o racismo internalizado. O abandono de espaços, como a Praça Zumbi dos Palmares, amplia o isolamento social, a sensação de invisibilidade e fragiliza a capacidade de resistência da população preta.
Proponho que pensemos juntos em alternativas de resgate e firmamento da Praça Zumbi dos Palmares. Espaço que merece nossa dedicação para que reviva como quilombo, agregando na construção da nossa identidade, das nossas relações sociais e culturais, na promoção da saúde coletiva, na educação popular e na ocupação dos espaços públicos.
Não há contentamento com placas e fotos em inaugurações. Queremos orçamento, estrutura e políticas reais. Como disse Angela Davis: "Não aceito mais as coisas que não posso mudar. Estou mudando as coisas que não posso aceitar".
Opinião
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