ARTIGO

Derrotar a impunidade para defender a democracia

Dizer não à anistia é afirmar que a liberdade não se negocia, que a memória não se apaga e que a justiça não pode ser confundida com esquecimento

Manifestações em 21 de setembro deixaram um recado inequívoco: o Brasil não aceitará retrocessos -  (crédito: Nelson Almeida/AFP)
Manifestações em 21 de setembro deixaram um recado inequívoco: o Brasil não aceitará retrocessos - (crédito: Nelson Almeida/AFP)

Bianca Borgespresidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE)

Desde o início da tramitação do processo judicial contra Jair Bolsonaro e os demais acusados pela trama que culminou no ataque às sedes dos Poderes em Brasília no 8 de Janeiro e que resultou em sua condenação e na de Braga Netto, Augusto Heleno, Mauro Cid e Alexandre Ramagem — e, assim, pela primeira vez na história, generais e lideranças militares foram punidos por uma tentativa de golpe —, o bolsonarismo passou a erguer a bandeira da anistia. Mas não há nada de legítimo nessa reivindicação: trata-se de um subterfúgio para assegurar a impunidade dos que atentaram contra a democracia. Nada seria mais danoso ao país do que repetir erros que marcaram tragicamente a nossa história.

É nesse mesmo espírito que surgiu a chamada PEC da Blindagem. Trata-se de uma tentativa descarada de criar um salvo-conduto constitucional para políticos e autoridades que atentam contra a democracia. Se a anistia pretende apagar crimes já julgados, essa proposta de emenda à Constituição busca garantir um escudo de impunidade a quem vier a conspirar contra o povo. É o golpismo travestido de emenda constitucional.

Foi contra esse duplo ataque que as ruas se levantaram no último 21 de setembro. As manifestações, convocadas por movimentos sociais e impulsionadas pelo setor cultural e artístico, deixaram um recado inequívoco: o Brasil não aceitará retrocessos. E tivemos a prova de que a democracia não se defende apenas nas instituições, mas na força viva do povo mobilizado. 

No processo de redemocratização, quando o povo brasileiro reivindicava a anistia para os perseguidos políticos, acabou-se produzindo uma distorção grave: torturadores foram igualados a torturados; os agentes da repressão, às suas vítimas; os criminosos de Estado, a cidadãos cujo único "crime" foi lutar por liberdade. Essa anistia "ampla" consolidou uma ferida que nunca cicatrizou: a ideia de que, no Brasil, quem atenta contra a ordem democrática encontra sempre refúgio na impunidade. Essa expectativa, ancorada na memória do equívoco histórico de 1979, cometido em nome de uma suposta transição para a democracia, é hoje um dos pilares de sustentação dos que conspiraram contra a Constituição e buscam escapar das consequências de seus atos.

É preciso lembrar, ainda, que não apenas os militares da ditadura foram poupados: todas as quarteladas e tentativas de golpe militar na história do Brasil até agora terminaram em algum tipo de perdão ou esquecimento oficial. Do ponto de vista jurídico, a anistia é um ato político excepcional, que perdoa crimes praticados em determinado contexto histórico. Mas ela não pode ser, novamente, usada para apagar atentados contra a democracia praticados por agentes políticos, pois a sucessão de anistias em nossa história forjou a convicção de que golpistas jamais seriam punidos — convicção que alimentou a audácia dos que planejaram o 8 de Janeiro.

O que está em jogo, portanto, não é apenas um debate interno. Há hoje uma articulação internacional lesa-pátria em curso que busca chancelar a impunidade de Bolsonaro. Lideranças da extrema-direita global, como Donald Trump, pressionam e tentam impor tarifas e chantagens econômicas contra o Brasil para que seu aliado não seja punido. É a mesma lógica colonial que tenta subjugar nossa soberania nacional às conveniências de interesses externos. Denunciar essa ofensiva imperialista é parte inseparável da luta contra a anistia.

Ao defenderem, agora, a anistia de Bolsonaro e de seus cúmplices, setores da sociedade tentam reeditar esse mesmo erro, utilizando o precedente da ditadura como alicerce para justificar o injustificável. 

A história ensina: quando o passado não é lembrado, ele retorna como ameaça. A anistia de ontem não fortaleceu a democracia: manteve a ferida aberta. Hoje, cabe à nossa geração escrever um novo capítulo que não repita a caligrafia da impunidade. 

Se o 21 de setembro demonstrou que não aceitaremos retrocessos, cabe agora canalizar essa mobilização à reivindicação por conquistas concretas que melhorem a vida do povo, como a justiça tributária, o trabalho digno, a ampliação de direitos, ao mesmo tempo em que defendemos nossa soberania diante de qualquer ameaça imperialista.

Dizer não à anistia é afirmar que a liberdade não se negocia, que a memória não se apaga e que a justiça não pode ser confundida com esquecimento. E é nesse rigor que escreveremos a sua defesa.

 


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Por Opinião
postado em 28/09/2025 06:00
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