Thallita de Oliveira — assessora política do Inesc
Os dispositivos fiscais rígidos, voltados a conter gastos públicos, desconsideram que o Brasil ainda está distante de cumprir os compromissos firmados na Constituição de 1988 em relação às crianças e aos adolescentes. Promover saúde, educação, cultura, lazer, alimentação e nutrição, liberdade, dignidade e tantos outros direitos de forma prioritária para a infância e a adolescência não pode se restringir ao plano retórico. É dever do Estado garantir, por meio de políticas públicas, o acesso a todos esses direitos. Mas como assegurar esse acesso diante da escassez de recursos orçamentários destinados a esse grupo da população?
Atualmente, pessoas de 0 a 17 anos representam 24% da população brasileira. No entanto, em 2024, de acordo com a metodologia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) intitulada Gasto Social com Crianças e Adolescentes no Orçamento Federal, apenas 4,91% de todo o Orçamento-Geral da União foi destinado a esse público. Essa disparidade tem impacto direto no bem-estar de meninas e meninos, afetando principalmente aqueles que mais dependem das políticas públicas para terem assegurada a proteção integral.
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Os dados socioeconômicos desse grupo da população revelam uma realidade preocupante: crianças e adolescentes de baixa renda, negros e indígenas apresentam os piores índices de alfabetização, de acesso à escola, de incidência de trabalho infantil, de violências sexuais e letais, além de enfrentarem altos níveis de insegurança alimentar e nutricional. Trata-se de uma herança histórica, perpassada por gerações que também não foram priorizadas durante a infância e a adolescência.
Apesar desse cenário dramático, o Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2026 (Ploa 2026), em vez de propor melhorias na alocação de recursos, faz o contrário, projeta redução dos gastos na maioria das ações voltadas especificamente a esse grupo. Um exemplo é o do Programa Orçamentário 5816 — Promoção e Proteção Integral dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes com Absoluta Prioridade —, para o qual o Ploa 2026 aloca R$ 60,8 milhões, um valor 23,4% inferior ao Ploa 2025 e 28,6% menor do que o autorizado até setembro de 2025, o que representa R$ 24,4 milhões a menos, segundo dados do Sistema Integrado de Orçamento e Planejamento (Siop).
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Esse programa é de responsabilidade do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que enfrentou dificuldades em 2024 e 2025 para executar os recursos disponíveis em ações como enfrentamento do trabalho infantil, combate às violências, fortalecimento da convivência familiar e comunitária e implementação das políticas socioeducativas. Essa dificuldade de execução pode ser um dos fatores que levaram à redução proposta no orçamento para o ano que vem.
No âmbito do Ministério da Saúde, as ações voltadas à implementação de políticas de atenção integral à saúde da criança e de atenção à saúde do adolescente e do jovem também apresentaram propostas orçamentárias para 2026 bastante inferiores às de 2025. Para a atenção integral à saúde da criança, foram previstos para o ano que vem R$ 6 milhões, uma queda de 77,8% em relação ao Ploa anterior. E, para a atenção à saúde do adolescente e do jovem, o ministério propõe R$ 3,1 milhões, uma redução de 78% em relação à proposta orçamentária de 2025. Ambas estão com execução orçamentária lenta em 2025.
A exceção foi a proposta de alocação de recursos para a Rede Alyne, estratégia de reestruturação da Rede Cegonha voltada ao aprimoramento do cuidado à saúde materna e infantil. Para essa ação, o governo alocou R$ 2,4 bilhões, valor 168,2% superior ao previsto no Projeto de Lei Orçamentária de 2025. A maior parte desse recurso está destinada a investimentos por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Caso esse valor seja aprovado pelo Congresso Nacional, representará um avanço para mães e crianças negras, considerando que o programa tem como meta reduzir em 50% a mortalidade materna de mulheres pretas e pardas até 2027.
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As ações do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, como a da Primeira Infância no SUAS - Criança Feliz e do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), também não tiveram aumento de recursos no Ploa 2026. Propôs-se uma redução de R$ 35,7 milhões no Criança Feliz em relação à proposta de 2025, passando de R$ 369 milhões para R$ 333,2 milhões. Em relação ao PETI, manteve-se os R$ 60 milhões do ano passado, valor que permanece inalterado desde o início de 2024 — porém, sem a realização de qualquer pagamento este ano até o momento da elaboração deste texto.
A boa notícia é que o governo vem ampliando gradualmente os recursos destinados à educação infantil, com previsão de aumento de R$ 89,4 milhões em 2026 para apoiar investimentos em creches e pré-escolas. O valor previsto no Ministério da Educação para o ano que vem é de R$ 1,4 bilhão.
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Todas as ações mencionadas anteriormente, quase exclusivamente voltadas a crianças e adolescentes, são discricionárias, ou seja, não existe obrigatoriedade de sua execução. Assim, parte importante das políticas públicas voltadas à infância e à adolescência — que, por lei, deveriam ter prioridade absoluta — está sendo comprimida pelo novo arcabouço fiscal, evidenciando a profunda distância entre o orçamento público e as reais necessidades dessa população.
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