ARTIGO

Na TV, Vale Tudo é ficção. No Congresso, é realidade

A convivência com a nossa brutal realidade é, talvez, mais cruel. Não há uma tecla que se aperte e nos desligue de preocupações e receios. E não são boas as perspectivas de que as cenas dos próximos capítulos sejam melhores

Votação da PEC da Blindagem em dois turnos na noite desta terça-feira na Câmara -  (crédito: Kayo Magalhães / Câmara dos Deputados)
Votação da PEC da Blindagem em dois turnos na noite desta terça-feira na Câmara - (crédito: Kayo Magalhães / Câmara dos Deputados)

José Natal jornalista

De 16 de maio de 1988 a 6 de janeiro de 1989, em 204 capítulos, de segunda a sábado de cada semana, a Rede Globo de Televisão mostrou ao povo brasileiro as peripécias absurdas e perturbadoras dos personagens da novela Vale Tudo, com índices de audiência quase sempre acima de 60%. A obra de arte assinada por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Basseres retratava, com rica dosagem de ironia, a corrupção e a conduta pouco republicana da sociedade do Brasil dos anos de 1980.

Denis de Carvalho e Ricardo Waddington dirigiram Regina Duarte, Antônio Fagundes, Glória Pires, Beatriz Segall e outros talentos na ficção que marcou época. Hoje no ar com nova roupagem, novo elenco, nova direção, mas com senso crítico ainda mais apurado, a obra adaptada por Manuela Dias mantém, para alguns, um sinal de alerta. Para outros, sinaliza pessimismo e descrença quanto ao futuro de uma sociedade ainda em busca de lanternas que iluminem caminhos incertos e perigosos.

A ficção convive com a realidade em variadas circunstâncias, todos nós sabemos disso. O que difere é a capacidade de aceitação de cada um. Muitos se chocam, outros nem tanto. Como prega Caetano Veloso, alguma coisa está fora da ordem mundial. Não pode ser natural, e nem aceito como providência com razoável equilíbrio de conduta, o comportamento de parlamentares eleitos pelo povo ao votar e aprovar medidas que, acima da lei e do bom senso, os tornem inocentes e isentos de punições, à revelia de outros julgamentos. Ainda aguardando retoques, pequenos ajustes ou aprovação de artigos e parágrafos, a chamada PEC da Blindagem é um escárnio que deve ser rechaçado de toda e qualquer cabeça que preserve a sanidade e valorize a ética. 

Eu, você e qualquer outro cidadão somos iguais perante a lei, e a ela temos que ser submetidos caso algo irregular aconteça em nosso convívio social. A Câmara dos Deputados, fonte geradora dessa aberração que agride e insulta todos os princípios de justiça, é a mesma a quem a comunidade deposita votos de confiança quando a ela cabe decisões que ajuste ou modifique medidas voltadas ao bem comum. Confiança, a bem da verdade, que a cada dia que passa se torna mais ausente e enfraquecida, dada a constante demonstração de desinteresse e de falta de responsabilidade política junto aos interesses do cidadão comum. 

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Nesse paralelo negativo, aqui comparado ao enredo de uma ficção como o de Vale Tudo, o bom seria que o universo parlamentar, flacidamente dirigido por um presidente que se exime de atitudes e de providências de interesse social, acordasse para a seriedade que o momento exige. As imagens da rebeldia de radicais tomando assentos da presidência da casa, dias atrás, ainda estão sendo exibidas pela mídia. Desafiando artigos da Constituição, parlamentares aliados a Jair Bolsonaro lideram com desenvoltura movimentos que clamam por uma anistia que livre de punições aos agressores do próprio Congresso Nacional. Estranhamente, assim como nos acostumamos a ver em cenas de novela, parlamentares, sabidamente com apoio declarado ao governo democrático, manifestam apoio a essas decisões, numa evidente demonstração de que, quando o interesse pessoal está acima do que é politicamente correto, o resultado é o caos. 

Incrédulo, desconfiado e com robusta dose de razão, o cidadão manifesta, por meio de pesquisas comprometidas com a verdade, o seu repúdio e o seu descrédito à conduta do mundo parlamentar, sempre agindo em defesa da própria imagem e de suas vaidades. Projetos de cunho social, medidas que podem de alguma forma aliviar setores da economia ou aqueles relacionados à segurança pública ou a ambientes domésticos são desconsiderados. É fácil comprovar essa conduta adotada pelo Congresso Nacional nos últimos tempos, notadamente na pauta negativa e improdutiva da Câmara dos Deputados, agora sob nova direção.

No mundo da ficção, com competência, arte aprimorada e dedicação, os personagens, em seus papéis, ativam corações e mentes a reflexões. Por se tratar de espetáculo, essas mensagens obedecem a prazos, com tempo certo para início e fim. A convivência com a nossa brutal realidade é um pouco diferente e, por isso, talvez mais cruel. Não há uma tecla que se aperte e nos desligue de preocupações e receios. E o que é pior. Não são boas as perspectivas de que as cenas dos próximos capítulos sejam melhores do que aquelas que estamos vendo hoje.

 Aqueles mais antenados ao cenário político devem se lembrar que, logo ao assumir a presidência da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, ávido por espaço na mídia, alardeava ser um seguidor convicto e dedicado dos passos de Ulysses Guimarães, ícone e exemplo de competência e ética da política brasileira, cidadão acima de qualquer suspeita — inclusive, ex-presidente da Câmara dos Deputados. Não poderia ter feito uma escolha melhor. Pena que, como seguidor do líder que nos deixou em outubro de 1992, com 76 anos, Hugo Motta deixou muito a desejar e dele parece não fazer uso de nenhum legado, para a tristeza do parlamento.

 

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Por Opinião
postado em 22/09/2025 06:00 / atualizado em 22/09/2025 08:19
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