Nesta semana, um "evento esportivo" inexistente conquistou milhões de espectadores. As chamadas "Olimpíadas femininas" viralizaram em redes sociais, como o X (antigo Twitter) e o TikTok, com vídeos que vão de competições de lavar louça e estender roupa até uma surreal "prova de faxina". Entre o absurdo e o risível, um detalhe passa despercebido para muitos usuários: nada daquilo é real. Tudo foi criado por inteligência artificial, com ferramentas como o Sora 2.
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O primeiro ponto a se analisar é que não se trata apenas de mais um meme inofensivo da internet. A proliferação desses vídeos toca em pontos sensíveis e perigosos. Ao ironizar e reduzir o papel da mulher a tarefas domésticas, a suposta competição revive estereótipos misóginos que a sociedade ainda luta para enterrar. Além disso, nos traz a sensação de que estamos cada vez mais próximos da era da realidade simulada, em que o escárnio e a mentira competem para moldar nossa percepção.
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O "humor", neste caso, deslegitima conquistas e a diversidade das mulheres na vida real e no esporte. A mesma tecnologia que pode revolucionar a medicina e a ciência é usada para fabricar um escárnio regressivo, em que a agressão simbólica é normalizada. Ao lado da misoginia, cresce também a cultura da desinformação, já alimentada por outros conteúdos virais igualmente falsos: "Prova" de quem fuma mais maconha; o físico e cosmólogo Stephen Hawking, que morreu em 2018, disputando uma competição de natação; desafio de "varrer tapete mais rápido"; e outras peças grotescas que circulam como se fossem registros de eventos reais.
Essa avalanche de falsificações levanta um segundo ponto que merece atenção especial: o perigo da desinformação política. Há, sim, um risco real que paira sobre as eleições gerais do ano que vem. Vídeos falsos de candidatos correm o risco de viralizar na véspera do pleito, sem que haja tempo para desmenti-los antes da abertura das urnas. Quantos votos correm o risco de mudar? Em um ambiente em que a mentira se alastra em uma velocidade impressionante, a verdade se torna um artigo raro e caro. Um resultado eleitoral mudar por conta de fake news é, sim, uma ameaça concreta à democracia.
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O exemplo recente do Nepal é emblemático. Não está em questão a legitimidade de a população querer derrubar um governo acusado de corrupção, mas, sim, as estratégias utilizadas para inflamar os manifestantes. De acordo com relatos da imprensa internacional, vídeos gerados por inteligência artificial com supostos âncoras de noticiários difundiram teorias conspiratórias, enquanto reportagens falsas anunciavam a morte de manifestantes dentro do parlamento, o que aumentou ainda mais a instabilidade no país.
Por isso, é necessário um alerta. No universo frenético das redes, em que cliques valem mais do que fatos e o absurdo rende engajamento, a fronteira entre o entretenimento e a destruição reputacional é tênue. A inteligência artificial não é a vilã. O problema está no uso que é feito dela, no vácuo de regulação e na ingenuidade (ou má-fé) de quem consome e compartilha sem questionar.
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A pergunta que se impõe é inevitável: estamos preparados para uma era em que a realidade pode ser fabricada com a mesma facilidade de um meme?
