ARTIGO

Quando o tio do zap governa

Se já é terrível imaginar um ser humano comum entediado se sentar no computador para espalhar pânico ou disseminar falsos tratamentos, o que dizer quando os "tios do zap" são líderes escolhidos democraticamente para governar

charge pinoquio vacina -  (crédito: kleber sales)
charge pinoquio vacina - (crédito: kleber sales)

Quem testemunhou os primórdios da internet há de se lembrar dos e-mails que entupiam nossas caixas-postais com revelações bombásticas, como a de que desodorante causa câncer de mama e de que bicarbonato de sódio "cura" autismo. Também inesquecível a insistente mensagem de que o pai de uma modelo famosa havia morrido após tomar um refrigerante cuja lata estava contaminada com leptospirose (de fato, a doença foi a causa da morte, mas a transmissão não ocorreu como apregoava a lenda urbana).

Com as redes sociais e os aplicativos de mensagens instantâneas, informações falsas na área de saúde ganharam um palco muito maior. O aumento da audiência foi acompanhado pelo crescimento de mentiras que parecem exercer um poder de convencimento maior do que a ciência sobre os receptores.

Se já é terrível imaginar um ser humano comum entediado se sentar no computador para espalhar pânico ou disseminar falsos tratamentos, o que dizer quando os "tios do zap" são líderes escolhidos democraticamente para governar, e não para "pregar peças" na população? 

Por aqui, tivemos a lamentável participação do agora condenado pela Justiça Jair Bolsonaro, quando presidente da República, na construção das narrativas falsas sobre a vacina, justamente quando o mundo mais precisava dela. Nos Estados Unidos, o secretário de Saúde, Robert Francis Kennedy Jr., espalha mentiras sobre imunizantes, apoiado por seu chefe, Donald Trump.

Na semana passada, Trump encarnou o tiozão do zap duas vezes. Sugeriu que vacina "causa" autismo e que o único antitérmico liberado para gestantes, o paracetamol, está por trás do que chamou de "epidemia" de problemas no neurodesenvolvimento. Nem é preciso lembrar que o transtorno do espectro autista (TEA) não é uma doença, mas um conjunto complexo de sintomas, com raízes não menos diversas e cuja fisiopatologia aponta especialmente para a genética.

Não é de se espantar, portanto, o resultado de um estudo divulgado na última sexta-feira, durante a Conferência Nacional da Academia Norte-Americana de Pediatria, no Colorado, Estados Unidos. Os pesquisadores, da Universidade da Carolina do Leste, analisaram o conteúdo do movimento de "ecoinfluencers", que vem ganhando força em plataformas como o TikTok. 

Essas pessoas enfatizam uma vida mais natural e o tratamento da saúde de forma integral. Na verdade, muitos criadores de conteúdo do tipo usam o (justíssimo) argumento de uma abordagem menos industrializada e mais holística como isca para espalhar fake news. Dos 120 vídeos examinados no estudo, 61% contradiziam estratégias de prevenção e tratamento consagradas.

Além das mentiras sobre a vacina, os conteúdos promovem substâncias cuja eficácia e segurança não foram testadas. Oitenta por cento dos autores de mensagens do tipo se identificam como pais e influencers. 

A falta de confiança nos canais oficiais não é à toa: nos Estados Unidos, adoecer custa caríssimo e, no Brasil, a má gestão dos recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) em estados e municípios prejudica o acesso da população a serviços básicos e complexos.

Porém, em vez de declarar guerra à ciência, cidadãos comuns deveriam valorizar o conhecimento e exigir mais responsabilidade de seus governantes. Até porque, à menor dor de barriga ou ferimento de raspão na orelha, é para os hospitais equipados com toda sorte de fármacos que eles correm.

 

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postado em 29/09/2025 06:00
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